Antonio Delfim Netto
Comemorou-se em 2005, numa cerimônia que reuniu um número seleto de economistas nacionais e estrangeiros, o quadragésimo aniversário da criação do Banco Central. A importância da comemoração foi aumentada pela revelação da disposição do governo, manifestada pelo então ministro Palocci, de colocar oficialmente no Congresso a discussão da "autonomia" constitucional da autarquia para a consecução do objetivo ou dos objetivos que lhe forem designados. Dispondo a autoridade monetária de apenas um instrumento (a taxa de juro nominal de curto prazo) há uma dificuldade prática de fixar-se mais de um objetivo. Velho enunciado da teoria econômica mostra que, sob certas circunstâncias, para atingir dois objetivos, por exemplo, é preciso dispor de dois instrumentos absolutamente independentes.
Como conseqüência desse fato, o mandato técnico atribuído aos bancos centrais pelo poder politicamente eleito é sempre um pouco difuso. Por exemplo: "manter a taxa de inflação no nível dos seus competidores internacionais, com a menor flutuação possível da taxa de crescimento físico". A idéia, no fundo, é muito simples: manipulando a taxa de juros nominal de curto prazo, a política monetária altera a taxa de juro real de longo prazo, de forma a produzir uma demanda global próxima da oferta global, cujo codinome neoclássico é "produto potencial".
Mas se o objetivo é tão saudável para sociedade, e a estabilidade dos preços é um dos mais importantes direitos da "cidadania", por que precisa o Banco Central de "autonomia" fixada na Constituição? A resposta é que o combate à elevação da taxa de inflação (o continuado aumento dos preços) se faz cortando a "demanda global" (através da taxa de juro real de longo prazo) reduzindo a realização do PIB e aumentando o desemprego. O "custo social" que se paga para manter a taxa de inflação constante no nível desejado é, em geral, alguma redução do PIB e, freqüentemente, do emprego.
Na ausência de autonomia constitucional, o poder político incumbente pode ser tentado (e a história confirma isso) a realizar um oportuno aumento da demanda global (reduzindo a taxa de juros) na antevéspera dos processos eleitorais, construindo, assim, um "ciclo político pernicioso", que o manterá no poder pela irresponsabilidade não percebida pela sociedade no curto prazo. Como é evidente, as conseqüências vêm depois... Reeleito pela mágica oportunística, o governo retoma o ciclo de controle da inflação, que exige, agora, maiores custos e sacrifícios para a sociedade. Um Banco Central autônomo tem que ganhar credibilidade. Quanto maior ela for, tanto maiores os benefícios da "autonomia".
Num regime de "metas inflacionárias", como estamos vivendo desde 1999, essa credibilidade é quase tudo: o governo sabe que se fizer uma política fiscal irresponsável aumentará o custo de sua dívida pública e, no final, produzirá uma redução da taxa de crescimento econômico da economia; os empresários sabem que a única via disponível para ampliar os lucros e financiar seus investimentos é o aumento da produtividade e os trabalhadores sabem que a única forma de melhorar seu salário real e aumentar o nível de emprego futuro é exigir apenas uma parte do aumento da sua produtividade.
Isso tudo ocorre porque o Banco Central "autônomo" recusa-se a sancionar qualquer aumento da taxa de inflação através do aumento da liquidez. Assim, os custos do controle da inflação recaem sobre os agentes perturbadores do equilíbrio: o governo vê aumentar o custo da sua dívida e ou aumenta os impostos ou tem de economizar em gastos não-financeiros, colhendo impopularidade crescente, e os empresários e trabalhadores sabem que qualquer tentativa de alterar a distribuição de renda via inflação terminará, fatalmente, na redução de suas vendas (para os empresários) e na redução do seu emprego (para os trabalhadores).
Idealmente, a credibilidade e autonomia instrumental do Banco Central garantem a estabilidade monetária. Mas o fato é que esta credibilidade e autonomia só funcionam se a política monetária produzir os resultados indicados pelos modelos que ela utiliza, ou seja, se os canais de transmissão da elevação da taxa de juro nominal de curto prazo para a taxa de juro real de longo prazo existirem mesmo e estiverem funcionando como eles prevêem. Sabemos, entretanto, que tais modelos são muito imprecisos. Recentes pesquisas empíricas têm demonstrado que alguns daqueles canais de transmissão não funcionam adequadamente e que outros, até aqui subestimados, têm maior relevância. É daí que decorre a convicção dos não-convertidos à "ciência monetária" que o controle da inflação envolve, talvez, 1/5 de ciência e 4/5 de arte.
Nada mais saudável, portanto, do que uma ampla, informada e explícita discussão dos modelos do nosso Banco Central aplicados à economia brasileira. De suas virtudes e de seus problemas para convencer a sociedade que pode entregar-se, sem receio e com proveito às vezes não imediatamente visíveis, às manipulações dos "cientistas monetários" nomeados pelo poder incumbente.
Neste momento de crise na economia real, a formulação e execução da política de juros exige ainda mais "arte" (porque a "ciência" é pouca) e a plena compreensão da "conjuntura mundial". Agora é hora de o Banco Central concentrar-se no apoio à normalização do crédito sem o que a necessária política fiscal não terá eficácia para sustentar um razoável nível de crescimento do país. Agora é hora das medidas de crédito e fiscais fortes, tempestivas e bem coordenadas.
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