Vera Rita Ferreira
Inflação é um perigo. Consenso entre especialistas, governo, gestores e população, curiosamente, tal unanimidade também existia quando vivemos a superinflação (1985-1994) até o Plano Real estancá-la. Como hoje estamos sendo revisitados pelo velho espectro do "dragão", chamo a atenção para um de seus aspectos de perigo pouco mencionado.
Se já antes todos declaravam em alto e bom som que ela deveria ser combatida, por que foi tão difícil fazer isso? Para quem não se lembra, em cerca de oito anos, mudamos quatro vezes de moeda e tivemos pelo menos meia dúzia de conjuntos de medidas que compuseram os planos econômicos - Cruzado e Collor ficaram na memória, mas houve outros mais. Apesar do consenso, portanto, ninguém pareceu acertar o alvo, até a engenharia do Plano Real dar cabo do problema.
Intrigada e munida de teorias e observações psicanalíticas, empreendi uma discussão sobre esse tema em minha dissertação de mestrado ("O Componente Emocional - funcionamento mental e ilusão à luz das transformações econômicas no Brasil desde 1985", USP, 1999). A hipótese era de que um fator emocional poderia ajudar a iluminar o caráter de quase perenidade que, à época, parecia aderido à nossa inflação. Cheguei à seguinte articulação: viver num contexto de alta inflação - acompanhada de indexação de preços e salários - combina com um regime mais primitivo de funcionamento mental, no qual predomina uma enorme vulnerabilidade a ilusões, uma vez que as operações psíquicas encontram-se dominadas por um sentido de urgência em direção a reduzir a tensão interna.
Trocando em miúdos: sente-se um desconforto gerado por uma ausência de satisfação e parte-se para tentar afastar esse sentimento desconfortável. Uma vez que nem sempre dispomos dos meios para saciar imediatamente nossos desejos - na verdade, só raramente os encontramos de pronto -, procuramos driblar essa dificuldade mediante criação de realidades alternativas, por assim dizer. Se o vazio interior é tão grande que, ao ver um celular novo, sou tomada pela convicção de que só aquele objeto poderá me oferecer alívio, eu aceito até me endividar para comprá-lo, caso não tenha dinheiro suficiente para a aquisição, isto é, descarto a consciência sobre minha real conta bancária e troco por uma conta imaginária, capaz de suprir aquele gasto. Os juros que o digam, depois, certo? Daí, já é tarde.
Mas esse é um modo de funcionar bastante comum entre todos nós, não poupa ninguém, seja rico, pobre, inteligente, educado, "expert" ou não. É o componente emocional, que se encontra na base de nossos processos cognitivos. O problema da inflação é que, psiquicamente, ela combina demais com ilusão. E como vimos, a sedução da ilusão não poupa ninguém.
O crescimento aparentemente mágico dos valores indexados atrai. Quem não se lembra do over e das poupanças cheios de zeros, que pareciam "dar cria" sozinhos? Ou a aparente facilidade para tocar negócios? Bastava comprar a mercadoria, esperar alguns dias, remarcar e pronto.
O fim da inflação trouxe muita quebradeira, como se as pessoas tivessem desaprendido administrar negócios e finanças ante exigências de outra natureza muito mais calcadas na realidade. Para ser competitivo e se manter no mercado, precisa ter uma boa noção do cenário geral, descobrir brechas para construir seu diferencial, lutar para não cair em obsolescência, ou seja, dá bastante trabalho.
Aí mora o perigo: a inflação e a indexação podem atrair por sua aparente facilidade, inclusive, porque, uma vez disparadas, é infinitamente mais complexo fazer o trem parar. Por outro lado, operar em economia estável implica estar atento e trabalhando constantemente, já que a realidade muda o tempo todo e há que se adequar a ela ou transformar o que for necessário. Se dá tanto trabalho, qual o problema, então, em deixar o dragão correr solto?
Primeiramente, são sempre os mais pobres e vulneráveis que pagam a maior parte da conta, como sói acontecer, lamentavelmente. Segundo, é ilusão! Não há desenvolvimento econômico verdadeiro com altos índices de inflação. O pedágio chega, mais cedo ou mais tarde, para todos. Se você é investidor, é provável que tenha começado a investir para valer e com maior conhecimento nos últimos 14 anos, quando planejamento financeiro passou a fazer parte da vida do brasileiro. Como planejar, antes, se a qualquer momento as regras podiam mudar e ia tudo por água abaixo? Vale a pena encarar o dragão de novo?
Vera Rita de Mello Ferreira é psicanalista, consultora, professora, representante no Brasil da Association for Research in Economic Psychology (IAREP - International) e autora dos livros "Psicologia Econômica - estudo do comportamento econômico e da tomada de decisão" e "Decisões econômicas - você já parou para pensar?"
E-mail verarita@verarita.psc.br
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