Por Martin Wolf
"Inflação é sempre e em todo lugar um fenômeno monetário." - Milton Friedman
O que explica a combinação de "aperto de crédito" nos EUA com disparada nos preços das commodities e inflação crescente em todo o mundo? Serão esses eventos não interrelacionados ou farão parte de um cenário mais amplo? A resposta está na segunda alternativa. Até agora, não se trata de uma volta à década de 70. Mas são necessárias ações para que isso se mantenha assim.
Inflação é uma alta persistente no nível de preços: é resultado de dinheiro (ou poder de compra) em excesso disposto a comprar poucos produtos e serviços. Um salto não recorrente nos preços das commodities não é inflação. E um salto assim não implica, necessariamente, inflação. Mas uma alta contínua nos preços relativos das commodities é sintoma de um processo inflacionário.
Sempre que se manifesta o impacto de um excesso de demanda, os bens cujos preços sobem primeiro são aqueles cujos preços são flexíveis, dos quais as commodities são o exemplo principal. Os preços das commodities são, portanto, um medidor de pressão. Se observarmos o que vem acontecendo em anos recentes, veremos que o indicador está na região do vermelho. O índice Goldman Sachs de preços das commodities dobrou desde o início de 2007. Os preços nominais do petróleo registram aumento de 150% no mesmo período. O movimento ascendente nos preços das commodities persistiu durante seis anos e meio. Tudo indica que grande demanda extra está se fazendo sentir sobre escassa possibilidade de ampliar a oferta mundial.
O resultado são aumentos inesperadamente grandes na inflação geral: a estimativa consensual para a inflação mundial dos preços ao consumidor em 2008 deu um salto dos 2,4% em fevereiro de 2007 para previstos 4,3% em junho de 2008. Esses saltos são pequenos, porém não tão pequenos. O mesmo pode-se dizer sobre o nível previsto. Se as pessoas se acostumarem com a idéia de que a inflação pode dar saltos assim, essa percepção poderá incorporar-se às expectativas - com conseqüências desastrosas.
Mas como podemos ter um incipiente processo inflacionário mundial, quando a economia americana e as de outros importantes países de alta renda estão em desaquecimento? A razão imediata é que isso é muito menos relevante do que no passado. A explicação fundamental está nas forças geradoras da demanda e oferta mundiais.
Do lado da demanda, duas coisas importantes estão acontecendo: convergência e desequilíbrios. Convergência, no crescimento acelerado de economias emergentes, muito especialmente da China e da Índia. Desequilíbrios, na forma de intervenções em mercados de câmbio visando dar sustentação à competitividade.
Charles Dumas, da londrina Lombard Street Research, aponta que, em Paridade do Poder de Compra, a China agora gera um pouco mais de 25% do crescimento econômico mundial em um ano normal, ao passo que os países emergentes e em desenvolvimento reunidos geram 70%. Até mesmo a taxas de câmbio de mercado, o crescimento do PIB chinês é tão grande quanto o do americano em anos normais para os dois países.
Os países emergentes também estão em boa situação para continuar crescendo, em larga medida porque têm posições externas sólidas. Muitas economias emergentes realizaram intervenções de grande escala nos mercados de câmbio, principalmente objetivando manter sua competitividade exportadora elevada e seus déficits em conta-corrente baixos. Nos sete anos até março de 2008, as reservas mundiais em moeda estrangeira deram um salto de US$ 4,9 trilhões. Apenas as reservas chinesas cresceram US$ 1,5 trilhão. De fato, cerca de 70% das reservas atuais foram acumuladas nesse período. "Nunca mais", disseram os países emergentes atingidos pelas crises nas décadas de 80 e 90; "nem uma vez", disse a China.
Políticas intervencionistas que visam sustentar a competitividade de exportações promovem a expansão das economias. Os resultados usualmente incluem rápidos crescimentos das exportações líquidas, juros baixos - visando conter entradas de capital - e expansão da base monetária, apesar das tentativas de esterilização. A economia chinesa está superaquecendo como conseqüência direta desse trio de efeitos.
A maior parte dessas reservas foi acumulada mais ou menos explicitamente em dólares americanos, acumulando assim riscos associados à economia americana. O fluxo de capital resultante financiou os déficits comercial e em conta-corrente americanos. Mas um déficit comercial é contracionista: para um dado nível de atividade da demanda interna, o déficit reduz a produção interna. Assim, os EUA precisaram expandir sua demanda interna para contrabalançar o efeito contracionista dos déficits externos. Alguns segmentos da economia precisaram gastar mais do que suas rendas. As famílias tornaram-se o mais importante desses segmentos. Assim, o crescimento do endividamento das famílias americanas que resultou no atual "aperto de crédito" é um resultado direto dos desequilíbrios em nível mundial.
Agora, o desafortunado Fed está tentando renovar a expansão da demanda em uma economia americana pós-bolha. Mas o principal impacto de sua política monetária se expressa por meio de um enfraquecimento do dólar americano e de uma expansão das economias superaquecidas vinculadas à americana. Para simplificar, Ben Bernanke está comandando a política monetária do Banco do Povo da China. Mas a política adequada aos EUA é enormemente inadequada à China e, na verdade, a quase todos os outros países interconectados na zona informal do dólar - ou, como alguns economistas a denominam, "Bretton Woods II".
Assim, não apenas os desequilíbrios comprovaram-se imensamente desestabilizadores no passado, como irão revelar-se ainda mais desestabilizadores agora que a bolha americana estourou. Num momento em que a maioria das economias emergentes necessita políticas monetárias bem mais apertadas, são obrigadas a afrouxá-las ainda mais.
Em contrapartida, do lado da oferta praticamente todas as notícias têm sido negativas na economia mundial. Seja qual for o otimismo que possamos acalentar em relação às possibilidades de aumento da oferta de energia no longo prazo, é impossível sermos otimistas no curto prazo.
O que vemos, então, é uma incipiente inflação mundial. Mas o banco central que concentra a maior influência sobre a política monetária mundial é aquele se defronta com o aperto de crédito pós-bolha. Sua dificuldade pós-bolha é agravada pela disparada nos preços de energia decorrente do forte crescimento da economia mundial.
Trata-se, portanto, de um problema mundial. Os países avançados deixaram de ser a força motriz mundial: eles estão importando inflação. Se o mundo tivesse um banco central único e uma moeda única, esse BC certamente apertaria sua política monetária, à luz da evidência das limitações da oferta mundial potencial sobre a taxa de crescimento. Dada a inexistência de tal banco central, a alternativa acertada tem de ser maior flexibilidade cambial e a fixação de metas para a inflação doméstica.
O mundo como um todo não pode importar inflação: se cada banco central assumir que a alta nos preços das commodities é o resultado de políticas definidas por outros países, o resultado geral terá de ser superaquecimento. E o pior: se isso for incorporado às expectativas, o mundo será depressivamente similar à década de 70. Não estamos lá. As autoridades monetárias precisam assegurar que nunca venhamos a chegar lá.
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