Atualmente, tanto quanto nos anos 70, vivemos um ciclo de inflação mundial. Há diferenças importantes, mas há também lições a serem extraídas para que os mesmos erros não se repitam. No início dos anos 70 ainda estávamos no regime de Bretton-Woods, com os Estados Unidos no seu "centro", emitindo a moeda que desempenhava o mesmo papel do ouro no regime do padrão-ouro, com os países da "periferia" fixando suas taxas cambiais com relação ao dólar. Quando os EUA aumentavam a oferta de moeda, obrigavam os demais bancos centrais a comprar dólares para sustentar as taxas cambiais, elevando o estoque mundial de moeda e determinando a inflação mundial. Nos anos 60, os EUA começaram a financiar com déficits públicos a guerra do Vietnã. O Federal Reserve (Fed, banco central americano) poderia ter resistido, elevando a taxa de juros e limitado a expansão monetária, mas optou pela acomodação monetária, levando ao crescimento da inflação mundial.
Quando os preços internacionais de commodities iniciaram o ciclo de alta, em 2002, muitos julgaram que ele derivava exclusivamente da expansão da demanda gerada pela China. Embora a China possa ter contribuído para parte da elevação, se estivéssemos assistindo apenas a uma mudança de preços relativos, aquele ciclo se encerraria quando os novos "preços de equilíbrio" fossem atingidos. Contudo, a contínua aceleração dos preços reflete um quadro diferente. Não estamos diante de uma simples mudança de preços relativos, mas sim de um aumento generalizado de preços nominais, que se iniciou com as commodities e está se espalhando para todos os demais preços. Por que a inflação mundial está retornando?
Atualmente não estamos mais no regime de Bretton-Woods, mas ainda assim há um grande número de países que fixam suas taxas cambiais com relação ao dólar, embora existam exceções, como a do Banco Central Europeu. Por outro lado, os EUA mantiveram taxas de juros extremamente baixas por um longo período, e mais recentemente aceleraram a expansão monetária, não para financiar déficits públicos como nos anos 60, mas para evitar que, ao atingir o sistema bancário, o estouro da bolha imobiliária produzisse uma crise bancária sistêmica. A China, que era freqüentemente apontada como uma "exportadora de deflação", devido ao seu câmbio subvalorizado e salários baixos, vem contribuindo para a inflação mundial ao acumular reservas expandindo sua oferta monetária. Poder-se-ia argumentar que todas estas intervenções no mercado de câmbio são "esterilizadas", mas, diante da queda das taxas reais de juros na grande maioria destes países da "periferia", o processo de esterilização nos parece imperfeito. O paradoxo é que, ao evitar o erro cometido pelo Federal Reserve de 1929, quando contraiu a oferta monetária provocando uma crise bancária, o Fed de 2007/2008 caiu no mesmo problema vivido nos anos 70: o agravamento da inflação mundial.
Nos anos 70, as autoridades brasileiras reagiram negando que a inflação brasileira derivasse da expansão fiscal e monetária, preferindo o diagnóstico de que assistíamos apenas uma inflação importada. Recomendaram (e adotaram) a mesma acomodação monetária que tem sido insistentemente sugerida atualmente pelo ministro da Fazenda. Há três lições que podemos extrair daquela experiência. A primeira é que a decisão de acomodar a política monetária fez com que a inflação saísse do controle. A segunda é que, ao tentar evitar no curto prazo o custo de combater a inflação, tivemos que pagar um custo muito mais alto a médio e longo prazos. A terceira é que, tanto quanto nos anos 1970, o presente surto de inflação mundial não é um "novo paradigma" da economia mundial, e terá que ser combatido. Da mesma forma como ocorreu nos anos 70, o final deste ciclo inflacionário exige uma fase de aperto monetário na maioria dos países, que ocorrerá mais cedo ou mais tarde. Nas últimas semanas, importantes banqueiros centrais vêm enfatizando sua preocupação com a inflação mundial, indicando que o momento do reconhecimento se aproxima. Que reflexos isto terá sobre a economia brasileira?
Felizmente a dívida externa em proporção ao PIB é menos do que 1/3 inferior ao que era em 2002; as reservas internacionais se aproximam de US$ 200 bilhões; e o governo eliminou seu passivo em dólares. Com isso, os anos das "paradas bruscas de fluxos de capitais" ficaram no passado. Mas isso não significa que o Brasil tenha se tornado imune às variações da economia internacional. Como ocorre com todos os exportadores de commodities, o câmbio real no Brasil varia inversamente com os preços internacionais de commodities. Há, por outro lado, uma extrema dependência da formação bruta de capital fixo com relação às importações: o barateamento das importações é, também, o barateamento das máquinas e equipamentos importados, elevando a taxa de investimentos. Significa que a inflação mundial levou à valorização do câmbio real, estimulando os investimentos e acelerando o crescimento do PIB. Este é o "presente" que o mundo nos deu nos últimos anos. A má notícia é que o mundo está prestes a nos mandar a conta.
Quando entrarmos no inevitável ciclo inverso, de queda dos preços internacionais de commodities, assistiremos este filme rodado ao contrário. A queda dos preços de commodities levará à depreciação do câmbio real, contraindo investimentos, e ao elevar a relação câmbio/salários estará também reduzindo os salários reais e o consumo das famílias. Este é o caminho através do qual os déficits nas contas correntes se reduzirão para acomodar a perda nas relações de troca.
Há duas ações que minimizam estes custos. A primeira delas é iniciar precocemente o combate à inflação, o que já vem sendo feito pelo Banco Central. A segunda é mudar a política fiscal, elevando os superávits primários, não para 4,3% do PIB, que é um nível no qual ele já vem se mantendo há mais de um ano, sem nenhum efeito sobre a inflação, mas para valores bem mais elevados. O déficit nas contas correntes é idêntico ao excesso da absorção sobre o PIB e, se o consumo do governo for cortado, as outras duas componentes da absorção - o consumo das famílias e os investimentos - podem manter-se mais elevados. Mas o governo discorda deste diagnóstico e prefere continuar gastando, na esperança de manter elevada a popularidade do presidente Lula e a probabilidade de eleger o seu sucessor. Como os tempos mudaram e a inflação atua na direção contrária, seria mais inteligente somar forças no seu combate.
Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti são economistas e escrevem mensalmente às segundas.
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