Ao longo de boa parte de 2007, o Banco Central (BC) reduziu sucessivamente as taxas de juros, por meio das reuniões do Copom. Dando continuidade ao relaxamento monetário que tinha sido iniciado no terceiro trimestre de 2005, o Copom começou 2007 com a Selic em 13,25% e mediante reduções sucessivas diminuiu a taxa até 11,25%. Entretanto, na reunião de outubro, ele interrompeu o movimento e manteve a taxa naquele mesmo nível. Na ocasião, não faltaram críticas à decisão, a ponto de até mesmo uma autoridade de um órgão oficial de pesquisas ter qualificado a mesma como "absurda", em incrível artigo de jornal. Pródigos em adjetivos, os críticos não economizaram qualificações, indo desde a tradicional acusação de que a decisão "atenderia aos interesses dos banqueiros", até a alusão à "insanidade" das autoridades monetárias.
A visão dominante podia ser sintetizada na idéia de que a inflação teria tido um simples "soluço"; as expectativas continuariam muito bem comportadas; o que havia seria apenas um problema localizado nos alimentos; e o BC, ao interromper o ciclo de quedas da Selic, estaria vendo "fantasmas". Tal visão lembra a famosa frase do empresário grego Stelios Haji-Toannou, fundador da companhia aérea Easyjet: "Se você pensa que segurança custa caro, experimente um acidente". Àqueles que costumam se queixar do rigor do BC, não custa lembrar: em 1986, para não ter que arcar com os custos de uma política monetária dura, o Brasil experimentou deixar os juros baixos para ver o que acontecia. A experiência nos custou quase 10 anos de planos fracassados de estabilização. É bom não repetir o exemplo.
A pergunta que não quer calar é: ninguém vai pedir desculpas ao BC? Que fique claro: uma taxa de juros real maior tende a apreciar o câmbio real e isso, a médio prazo, não é bom. Entretanto, a idéia de que o BC via apenas fantasmas é uma fantasia retórica: a ameaça da inflação é algo concreto.
Vamos aos números. Em outubro, quando o BC fez uma pausa no processo de redução dos juros - que acabou depois revertido com o novo ciclo de alta - a inflação acumulada em 12 meses, pelo IPCA, estava em 4,1 %, depois de ter fechado em 3,1 % em 2006. A variável fechou 2007 em 4,5 % e nos 12 meses encerrados no mês em curso o IPCA-15 já está em 5,9 %. Mais ainda: o INPC, que capta o impacto do custo de vida no bolso dos mais pobres, tinha aumentado 2,8 % em 2006; esse aumento alcançou 5,2 % em 2007 e provavelmente até junho ultrapassará 7,0 %.
Os críticos da política monetária erraram de forma ampla, diga-se de passagem. Diziam que o que havia em curso era um soluço, quando o fenômeno de alta da inflação já dura um ano e meio. Alegavam que os alimentos ajudariam a conter a inflação em 2008 e nada disso está ocorrendo. Opinavam que as expectativas eram imunes ao que estava acontecendo com a inflação, mas a mediana da expectativa de inflação para 2009 das instituições "top five" de curto prazo que respondem ao Focus era de 4,0 % no começo do ano e já está em 5,0 %, com viés de alta. Julgavam que o problema estava no índice cheio e não nos núcleos, quando a média dos núcleos por médias aparadas e por exclusão, acumulada em 12 meses, que estava em 3,5 % em meados de 2007, atingiu 4,8 % nos 12 meses encerrados em maio, também com tendência de alta.
Não se quer com isso negar a anomalia histórica representada por uma situação na qual, 14 anos depois de um plano de estabilização bem-sucedido, a taxa de juros nominal no fim do ano seja da ordem de 14 %. Nem, muito menos, negligenciar o perigo de que, se a estratégia de combate à inflação centrada na política monetária, com o gasto público crescendo fortemente, se consolidar, o país colha em conseqüência uma continuidade da apreciação do real e o retorno do sinal vermelho associado ao setor externo, daqui a alguns anos. O que se quer frisar é que:
a) É preciso respeitar mais o Banco Central. Não é possível que algumas autoridades dêem entrevistas insinuando que o grande problema do país é o BC, como se ele fosse um corpo de outra galáxia e não um elemento fundamental do governo do qual tais autoridades formam parte;
b) É preciso reconhecer que o BC acumulou crédito. Ele acertou no atacado - independentemente de, como qualquer instituição composta por seres humanos, ter cometido alguns erros nas dezenas de decisões que lhe coube tomar nos últimos anos - e, desde que a meta de inflação foi fixada em 4,5 %, para o ano de 2005, entregou à sociedade brasileira uma taxa média em quatro anos de 4,9 %, supondo uma taxa de 6,3 % no ano em curso - um grau de acerto que a torna talvez a agência oficial mais eficiente do país, em matéria de rigor no cumprimento das metas de desempenho;
c) Há que se ter noção do que seja o processo histórico. Se hoje os EUA são aclamados como exemplo de política antiinflacionária bem-sucedida é porque Volcker, há 30 anos, jogou as taxas de juros "na Lua", para 20 %. O BC brasileiro não tem a mesma credibilidade que os dos países desenvolvidos, mas certamente o país está melhor do que os EUA em 1979, em matéria de combate à inflação. Daqui a 10 ou 20 anos poderemos ser parecidos nessa matéria com os EUA ou a Europa de hoje e não ter que elevar muito os juros;
d) A coordenação de políticas é fundamental. Se a política fiscal ajudasse mais, as taxas de juros não teriam que subir tanto. Entretanto, se a política fiscal não ajuda, o BC acaba tendo que dar um combate solitário à inflação.
Atacar o BC é um erro. Poderá se converter em um erro muito pior se, como se especula, Meirelles deixar o cargo em 2009 e o ambiente de pressão inflacionária ainda vigorar. Mesmo que seu sucessor seja um técnico competente, um presidente do BC politicamente mais fraco dificilmente teria a força para, se for preciso, conservar uma política monetária austera. Que a oposição ataque o BC, é algo natural. Porém, que ele seja alvo do "fogo amigo", hoje, é incompreensível - e, em 2009, poderá ser um problema grave.
Fabio Giambiagi, economista, co-organizador do livro "Brasil Globalizado" (Editora Campus), escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: fgiambia@terra.com.br.
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