Flávia Salme, iG Rio de Janeiro
Ex-coordenador de Relações Internacionais da instituição, Mohamed não descarta a possibilidade de golpe militar no Egito, mas destaca o carisma de ElBaradeiFoto: Divulgação Unicamp
Radicado no Brasil há 39 anos, o engenheiro agrônomo egípcio Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib, pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da Universidade de Campinhas, diz que acompanha de perto os conflitos em sua terra natal, desde 25 de janeiro. “Era dia do meu aniversário, fiz 69 anos. Liguei para os meus parentes, mas não para comemorar a data. Foi um telefonema de susto para saber como todos estavam”, diz o professor Mohamed que tem cinco irmãos e uma dezena de primos e sobrinhos espalhados pela capital Cairo, Alexandria e Port Said, próximo ao Canal de Suez.
Estudioso das questões de seu país, ele afirma que os conflitos – que classifica de “levantes” – apresentam puramente razões sociais, e não políticas. Apesar de considerar possível haver um golpe militar nos próximos dias, o ex-coordenador de Relações Internacionais da Universidade de Campinas defende o carisma do prêmio Nobel da Paz Mohamed ElBaradei . “Acho que ele será capaz de reunir diferentes forças”, avalia.
A seguir, ele o professor Mohamed Habib apresenta suas reflexões sobre a atual situação do Egito.
iG: O senhor é um estudioso da movimentação política e social do seu país, o Egito. Como avalia essa revolta nacional contra o presidente Hosni Mubarak?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Não fiquei muito surpreso. Há três anos, mais ou menos, escrevi um artigo em que previa essas revoltas populares. O povo egípcio é milenar, de uma sabedoria muito grande. E, apesar disso, deu a Mubarak três décadas de poder. O povo aceitou alterar a Constituição para que ele pudesse permanecer no cargo. E, ao longo desse tempo, Mubarak aceitou fazer do Egito uma experimentação política de um grupo econômico extremamente liberal. Hoje o Egito, que não conhecia o que a gente chama aqui no Brasil de favela, tem várias favelas. Há pessoas morando até em terreno de cemitério. Não há emprego, não há saúde pública, não há saneamento, não há escolas. Existem estimativas de que 25% da população vivem hoje com menos de US$ 2 por dia. A paciência do povo esgotou. O que acontece lá não é um levante ideológico ou político. É puramente social, uma insatisfação geral e acumulada.
iG: O senhor diz que as manifestações são “técnicas”. Pode explicar?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: O Egito atravessa há décadas um processo de exclusão social e econômica muito acentuado. Foram várias gotas d’água que se somaram. Digo que foi um movimento “técnico” porque não se trata de um levante religioso ou político. Se forem observar, não são só pobres ou aqueles que vivem abaixo da linha da pobreza que estão nas ruas. É a classe média do Egito. Há jovens estudantes, universitários, sindicalistas, trabalhadores das mais diversas áreas. Essa insatisfação vinha sendo manifestada há alguns anos. Nas últimas três décadas de controle do Mubarak, os meios de comunicação já denunciavam a queda brusca do poder aquisitivo da população. Até mesmo o ranking das universidades teve uma queda muito brusca nesse período. Por isso, acredito que não se trata de uma revolta ou um antagonismo político.
iG: E por que o Egito não foi democratizado nesses últimos 30 anos?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Me perguntam muito sobre isso. E o que posso dizer é que o regime das ditaduras é conveniente para as grandes forças políticas do Planeta. E aí eu incluo, principalmente, o império britânico e o império americano. Os Estados Unidos, por exemplo, são considerados exemplo de democracia. É verdade. Se você for lá, vai poder constatar os avanços que eles têm nas liberdades individuais. Porém, esse discurso da democracia americana não é condizente com a prática daquele país no Oriente Médio. Nenhum país árabe é democrático. E essa situação faz parte dos interesses dos EUA na região. O Egito, por exemplo, recebe ajuda monetária americana, a troco da manutenção desse regime. O Egito sofre intervenção direta desses impérios econômicos desde a 1ª Guerra Mundial.
iG: E a oposição, onde ela se situou nesse período?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Mubarack não permitiu o surgimento e a organização de forças políticas oposicionistas no Egito. A não ser, uma atuação bem pequena dos movimentos religiosos. Mas, se observar de perto, não há 5% das cadeiras do Congresso utilizadas por líderes ou representantes religiosos que transitam nesse campo da oposição. Por isso que insisto em afirmar que isso que está acontecendo agora não é resultado de forças políticas da oposição ou qualquer outro grupo organizado, seja religioso ou sindicalista. É puramente social.
iG: O senhor acredita que será possível destituir Hosnir Mubarak?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Acredito e espero que sim. Temos que ver a capacidade de resistência da população. Se o ritmo que está agora for mantido por mais três semanas, será impossível não haver algum resultado. A população conta com a simpatia das Forças Armadas. Se revirar o passado, você vai observar que em 1952 os militares foram responsáveis por destituir o rei Faruk I. O militar egípcio Gamal Abdel Nasser assumiu o poder depois de seu grupo abolir a monarquia e banir os partidos que existiam até então e ficou à frente do governo egípicio até 1970.
iG: Mas se a situação for resolvida pelos militares não há risco de golpe?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Sim, sempre há. O Egito já passou por um golpe, com o Nasser. Mas ele, por exemplo, ficou conhecido por desenvolver uma política nacionalista. Não sou a favor do golpe militar. Mas digo que é preciso compreender por que a população egípcia vive esse momento com a esperança de que as Forças Armadas tomem o poder e coloquem o ditador em julgamento internacional.
iG: Além dos militares, o senhor acredita que a oposição tem condições de assumir o governo no Egito?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Percebo um movimento muito carismático em torno de Mohamed ElBaradei, que é visto como um rosto da oposição. Claro que não é o único. Mas é carismático. Ele já manifestou publicamente sua intenção de negociar um governo de coalizão e já fez apelos públicos para que os Estados Unidos digam a Mubarack que renuncie.
iG: E o senhor crê na possibilidade de o presidente Hosnir Mubarak renunciar?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Ele está dando todos os sinais que não vai querer largar o osso. O toque de recolher imposto pelo governo começa às 18h e termina às 7h. São 13 horas em que a população fica sob uma forte política de repressão, sem transporte, sem meios de comunicação como internet, celular. Enfim, a política antimotins que ele anunciou agora, no domingo, já é um sinal de que ele não vai desistir. Mas espero que predomine o bom senso. E a população está dando provas de que não vai ceder. O toque de recolher foi ignorado. Acho que se houver algo que aqui no Brasil, no período da ditadura militar, foi chamado de “não revanchismo”, ele pode ceder. Explico: se houver garantias de que ele não será preso ou julgado pelas cortes internacionais por crimes contra os direitos humanos, pelas mortes que estão sendo contabilizadas agora, se ele ganhar exílio, talvez Mubarak aceite sair sim.
iG: Na avaliação do senhor, os manifestantes terão fôlego para prosseguir com os protestos?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Converso com meus familiares e amigos da Universidade de Alexandria e percebo que neste momento a população não está muito afetada. Por exemplo, agora é inverno no Egito e as todas as famílias estão bem abastecidas de comida e água. Pelo tempo dos protestos, ainda não houve espaço para chegar a uma insuficiência de abastecimento. Mas o povo egípcio é muito consciente, sabe se virar. Se chegar a situações extremas, a população saberá como operar uma estação de tratamento de água, uma estação de energia. Além disso, é uma gente muito solidária, sabe dividir comida. Agora, se o levante se prolongar por mais de três semanas, verei motivos para preocupação, sim.
iG: Há alguma situação em especial que o preocupe no momento?
Mohamed Ezz El-Din Mostafa Habib: Os boatos. Ontem à noite (domingo, 30) recebi informações de amigos ativistas lá no Egito de que chegou um enorme carregamento de armas para ajudar Mubarak a controlar os manifestantes. Pelo que ouvi, são aviões carregados enviados por um país vizinho que é simpatizante de governos ditadores (o professor não disse o nome do país, mas confirmou se tratar de Israel quando perguntado pela reportagem do iG). Se for verdade, haverá uma sangria, será um massacre. Espero que seja boato. Mas essas informações começam a circular e a espalhar pânico entre as pessoas.
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