18/04/2008 15:47:13
Mauricio Dias
Na quarta-feira 16, o Copom anunciou uma alta de 0,50 ponto porcentual da taxa Selic, para 11,75% ao ano. A decisão de elevar o juro empurrou o Brasil de volta ao topo da lista dos países com as taxas mais altas do mundo. É um círculo vicioso ao qual o País está preso por um regime de “financeirização”, como alerta o economista Miguel Bruno, coordenador do Grupo de Análise e Previsões da Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea.
Nos dicionários de língua portuguesa ainda não existe o verbete “financeirizar”. Então, que verbo é esse, pouco conhecido, mas que se tornou objeto de debate dos economistas em todo o mundo?
Num ambiente de financeirização, diz Bruno, o Estado fica subordinado ao mercado e perde autonomia. Mantém prioridade máxima na luta contra a inflação e torna o crescimento e o nível de emprego, por exemplo, meras “variáveis de ajuste da economia”, explica. Professor-adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Uerj, ele fez do tema o foco da tese de doutorado, título que obteve na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, França.
Neste contexto, onde a hegemonia é das finanças, surpreende a afirmação de Bruno de que “os banqueiros não são os vilões dessa história”. Seriam, tão-somente, “agentes de uma política de acumulação sustentada pelos juros”. O retrato claro e assustador desse regime ele disseca na entrevista a seguir.
CartaCapital: O Banco Central, mais uma vez, atrai a ira dos que querem taxa de juro menor. O BC é a fonte do mal?
Miguel Bruno: Sob regimes de crescimento dominados pela lógica da acumulação financeira, os bancos centrais são premidos a praticar uma política monetária restritiva. Isto é particularmente o caso nas economias em desenvolvimento e nas desenvolvidas que não são nações hegemônicas no cenário internacional. Neste contexto, com sua autonomia drasticamente reduzida, a política monetária converte-se num expediente de acomodação e validação das expectativas dos mercados financeiros internacionalizados.
CC: É o que acontece no Brasil?
MB: No caso brasileiro, como o processo de financeirização desenvolve-se predominantemente pela renda de juros, o Banco Central termina aprisionado pelo circuito da acumulação rentista e patrimonial. Daí a enorme dificuldade para baixar expressiva e rapidamente as taxas de juro e mantê-las compatíveis com uma trajetória de desenvolvimento econômico sustentável. Já que a renda de juros é um dos pilares desse tipo de financeirização, sua determinação é estrutural ao modelo.
CC: Por que o Brasil perdeu a trajetória de crescimento acelerado?
MB: Essa mudança começou nos anos 1980, causada por vários fatores. Um dos mais importantes foi o discurso ideológico sustentado pela idéia básica de que a abertura econômica seria a saída para o Brasil reencontrar essa trajetória perdida de crescimento. Argumentavam que era preciso diminuir o Estado, gastar menos e abrir a economia. Veio depois o programa de privatização. Esse conjunto de transformações estruturais tinha impacto direto na forma como o setor privado se relacionava com o poder público federal.
CC: O presidente Fernando Henrique Cardoso dizia que não tinha saída.
MB: Isso é uma verdade por um lado e não é por outro. É possível citar nações como Índia e China, que optaram por uma forma diferente de adesão. Há assimetria entre países. Toda vez que se aumenta o grau de inserção internacional de uma economia perde-se um pouco a autonomia da política econômica. O grau de relacionamento internacional limita naturalmente o poder de decidir. Mas isso não justifica o leque de decisões tomadas pelo governo Fernando Henrique. Umas dão mais autonomia, outras dão menos. A decisão escolhida é a expressão de interesses internos que lucrariam com as medidas adotadas.
CC: Havia opção?
MB: Havia. A globalização não pode ser vista como um fenômeno da natureza. Algo como o aquecimento global, a gravidade. A globalização é um fenômeno econômico e político. Eles asseguravam que era portadora de benesses e que seriam inescapáveis. Na primeira metade dos anos 90, tentaram convencer que seria a senha de entrada para um mundo pleno de vantagens e benefícios irrecusáveis. Não existe uma única fórmula para se aderir à globalização.
CC: O setor bancário, no Brasil, encarna todo o mal.
MB: Isso é mistificação. Os banqueiros não são os grandes vilões do processo de financeirização. Eles somente se aproveitam de uma estrutura montada. Já nos 80 havia a famosa “ciranda financeira”. Quem ganhava com ela? Quando se olha a ciranda, a moeda indexada e a correção monetária, entre outras coisas, percebe-se que essa conjunção de fatores, no fim da década, por questões de endividamento público, iria aprisionar e subordinar o Estado.
CC: Eles não mostram a cada ano lucros cada vez mais fabulosos?
MB: É possível perceber que, a partir de 1995, com a estabilização dos preços, caiu bruscamente a participação do setor financeiro no PIB. Não se pode imputar aos bancos a culpa de tudo. Os dados de juros recebidos pelo sistema financeiro nacional mostram que, entre 1993 e 2005, cerca de 29% do PIB foi absorvido pelos juros. O sistema bancário financeiro recebeu 29% do PIB em juros, mas repassou 22%. Assim, na relação entre juros recebidos e pagos, o setor reteve 7%.
CC: Por que a carga tributária é tão pesada?
MB: Os tributos são o outro lado da mesma moeda. Uma economia em que 29% do PIB são juros recebidos pelo sistema financeiro não pode ter uma carga tributária pequenininha. O Estado participa desse fluxo de juros como principal tomador de recursos e pagador de juros. Não dá para mudar a política econômica sem mudar o regime que a pressupõe. Em um regime de acumulação financeira por juros, como é o do Brasil, não é possível manter a trajetória da taxa em queda permanente. É um problema estrutural e não mais de política econômica. Não adianta olhar a carga tributária e deixar de lado a carga financeira. É uma carga colossal.
CC: O senhor fala do lucro crescente dos empresários. De uma maneira geral, eles apontam a carga de impostos como fator inibidor de investimentos.
MB: O lucro bruto deles é crescente. Embora a carga tributária exerça um papel importante, ela não é a causa principal. Se os encargos são tão altos, por que o Brasil continua sendo um país que atrai capital externo? Não se pode explicar o baixo crescimento por questões trabalhistas e por questões tributárias. O que adianta ter inflação baixa e nível de desemprego elevado? Pobre perde com a inflação só quando está empregado. Sem emprego ele não tem nada a perder. Enfim, a moeda forte não vai para o bolso de quem perdeu o emprego.
CC: O desemprego é o custo social da financeirização?
MB: É bom observar uma relação importante que existe entre a força total de trabalho, a População em Idade Ativa (PIA), e a população total do País. Em 2006, 67% da população tinha idade para trabalhar. Uma parte desse contingente estudava e ainda não era economicamente ativa. A relação entre o nível geral de emprego e a população economicamente ativa mostra quanto o crescimento da força de trabalho potencial está sendo absorvido. Entre 1950 e 1980, por exemplo, não havia problema, a oferta crescente de força de trabalho era absorvida. Em vários momentos o nível de emprego superava a oferta potencial de força de trabalho. No regime de crescimento financeirizado, por juros, essa relação despenca.
CC: O desemprego estabilizou?
MB: Os dados mensais do IBGE mostram uma pequena recuperação. Embora esses números só retratem seis grandes regiões metropolitanas e só tratem do desemprego aberto. O fato é que o ritmo é muito lento e beneficia quem ganha um ou dois salários mínimos. O discurso sobre “capital humano” faz sentido, mas não isoladamente. É preciso aumentar a educação e a qualificação. Se há baixo crescimento e a prioridade é dada ao capital humano para gerar emprego, isso, no limite, provoca fuga de cérebros. O país que qualifica e não emprega, força a imigração. A educação não é uma panacéia. Não gera emprego. Ela tem de estar casada com a política de crescimento econômico.
CC: E o PAC neste contexto?
MB: A idéia do PAC é boa. Se fosse lançado no primeiro mandato, teria sido melhor. Isso prova que numa economia como a brasileira o Estado é fundamental. O Estado talvez seja o único agente capaz de criar uma saída para esse círculo vicioso da acumulação patrimonial e financeira. Não se trata de um problema de escassez de poupança, e, sim, de alocação improdutiva de recursos.