sexta-feira, 18 de abril de 2008

As finanças e a produção

04/04/2008 15:46:52

Delfim Netto

O desequilíbrio externo produzido pela assimetria dos mecanismos de ajuste criados em Bretton Woods levou ao abandono, em 1973, da ligação direta entre o ouro e o dólar americano, dando início ao sistema de câmbio flutuante, que hoje é praticamente universal. Uma política monetária laxista e de acomodação do Federal Reserve permitiu uma violenta inflação nos EUA (10% ao ano em 1974-1975 e 13% em 1979-1980) e uma cavalar desvalorização do dólar no período (grosseiramente, de 40% ante o marco alemão e o iene). 

Em resposta, o preço nominal do barril de petróleo passou de 3,35 dólares em 1970 para 10,37 dólares em 1974, alcançou 22,40 dólares em 1979 e atingiu 37,38 dólares em 1981. Isso arruinou o equilíbrio externo das economias emergentes do mundo capitalista e dos satélites da URSS, que dependiam do petróleo para movê-las. Apenas para dar um exemplo, a tabela revela o efeito desse movimento sobre a economia brasileira. 

Em 1979, o presidente americano Jimmy Carter escolheu o excelente economista Paul Volcker (um falcão monetarista) para dirigir o Fed e pôr ordem na casa. Até então, os déficits em conta corrente dos emergentes dependentes do petróleo tinham sido financiados por uma espécie de corrente da felicidade, montada com a cumplicidade dos fornecedores de petróleo, do sistema bancário e dos consumidores. Os bancos emprestavam (a taxas de juro flutuantes) aos consumidores, que pagavam os fornecedores, que voltavam a depositar nos bancos. Volcker cancelou a bebida no meio da festa: elevou a taxa de juro de 6% (em 1975-1978) para 14% (em 1980-1982). A taxa de empréstimos interbancários saltou de 8% em 1975 para 19% em 1981. A inflação americana voltou a 1,9% em 1986 e o mundo emergente, inclusive o Brasil, quebrou, sob o peso da dívida que havia contraído para sobreviver. 

Os anos 80 marcam uma mudança importante na economia mundial. Margaret Thatcher, na Inglaterra (1979-1990), e Ronald Reagan, nos EUA (1981-1989), consagram uma nova ideologia. Esta recomenda o Estado mínimo e a absoluta liberdade dos mercados de bens, serviços e capitais. O movimento não seria ideológico (como de fato é), mas apoiado nos avanços da ciência econômica. Ele se apresenta como tal na formulação do Consenso de Washington, construído no início dos anos 1990. 

A bem da verdade, John Williamson, que sistematizou o Consenso, nunca recomendou a liberdade do movimento de capitais. Suas demais sugestões fazem sentido: são razoáveis e óbvias. Aquela não. É apenas um contrabando introduzido na teoria pela sua identificação falaciosa do movimento de capitais com as vantagens comparativas que recomendam a liberdade do comércio internacional de bens e serviços. Estamos vivendo agora o último ato das conseqüências danosas para a economia real de sua dominação pelas finanças gerada a partir daquela ideologia. 

As perturbações que a especulação financeira produz na economia real têm formas insuspeitadas. À medida que os hedge funds enxergam a oportunidade de estimular um aumento importante dos preços de uma mercadoria, para realizar o lucro rápido criado pelo comportamento de incautos menos esclarecidos que os seguem, o preço da mercadoria descola dos seus fundamentos: a oferta, a procura e o nível dos estoques. 

O exportador de soja, que tem necessidade de fazer hedge para se proteger, é sujeito a um estresse financeiro que exige ou uma disponibilidade absurda de capital de giro ou o socorro do sistema financeiro para cobrir as “chamadas de margem” produzidas pela elevação dos preços. Isso aumenta seus custos. E como “é do couro que sai a correia”, o custo acaba por rebater no preço do pobre produtor. Quem efetivamente produz e corre os riscos inerentes à produção e que, se for hábil, também faz hedge para se cobrir da variação dos preços é o único que paga os custos, porque não existe seguro contra as variações de sua renda. 

Ninguém vive das mágicas financeiras. Todos vivem da produção de bens e serviços. As finanças, de tão espertas, estão destruindo a produção. É tempo de controlá-las, o que, certamente, não será tarefa fácil.

Delfim Netto

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