18/04/2008 12:43:11
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
O colunista Martin Wolf, do jornal britânico Financial Times, não mediu palavras. “Recordem a sexta-feira, 14 de março de 2008: foi o dia em que o sonho de um capitalismo de livre mercado e alcance mundial morreu. Por três décadas avançamos na direção de sistemas financeiros propelidos pelo mercado. Com sua decisão de resgatar o Bear Stearns, o Federal Reserve, instituição responsável pela política monetária dos Estados Unidos e principal defensor do capitalismo de livre mercado, decretou o fim de uma era.”
Pode ser exagero dizer que esse fato isolado marca uma virada de 180 graus. Há, sim, como falar de um sinal de uma gradual mudança de curso, quando os EUA tomam providências para ampliar a autoridade do Fed sobre os bancos de investimento e o diretor-gerente do FMI apela aos países ricos para que não se limitem à política monetária e recorram a políticas fiscais anticíclicas. Mas não é de hoje, nem dos últimos meses, que o pêndulo começou a se voltar na direção de maior intervencionismo.
De Margaret Thatcher e Ronald Reagan ao primeiro governo Bush júnior, e ainda mais nos anos Bill Clinton, tais movimentos seriam inimagináveis. Em todo o mundo capitalista, a ordem era reduzir a presença do Estado na economia, principalmente no sistema financeiro. Mas desde que existe o capitalismo industrial há uma espécie de alternância de gerações. De 30 em 30 anos, mais ou menos, trocam-se as posições quanto a essa questão.
Nos anos 1860, o liberalismo selvagem descrito nos textos mais dramáticos de Karl Marx ainda era o dogma do mundo então dito civilizado. Trinta anos depois, várias grandes nações, inclusive EUA, Alemanha e Japão, cresciam por meio do protecionismo, da ajuda estatal à criação de grandes grupos industriais, da construção de impérios coloniais, da regulamentação do trabalho – ou de todas essas coisas juntas – com amplo sucesso. O britânico William Harcourt, líder do Partido Liberal no coração da mais liberal das metrópoles, disse em 1887: “Agora somos todos socialistas”.
Mais uns 30 anos à frente, na década de 1920, a malfadada tentativa de restaurar a ortodoxia liberal e o padrão-ouro após a Primeira Guerra Mundial deu com os burros n’água e acabou em caos econômico, ascensão do comunismo e do fascismo e nova guerra. Nas palavras do economista britânico John Maynard Keynes, foi preciso salvar o capitalismo de si mesmo por meio de vigorosa intervenção estatal, como foi feito a partir dos acordos de Bretton Woods. “Agora somos todos keynesianos”, admitiu Milton Friedman em 1965.
Era verdade, salvo pela excêntrica seita austríaca de Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, para os quais toda intervenção estatal na economia era anátema. Mas foi na direção destes que o pêndulo oscilou na década de 70, quando as políticas keynesianas concebidas nos anos 1940 se mostraram insuficientes para lidar com os problemas decorrentes da mudança nas correlações de força política e econômica entre as nações e do crescimento da dependência dos países desenvolvidos em relação ao mercado externo.
“O mercado” era então tido como a resposta para praticamente todos os problemas sociais, enquanto o Estado era inerentemente mau, irresponsável e autoritário. Todas as reformas econômicas pretendiam manietar o Estado, retirar-lhe os instrumentos de ação e fiscalização, reduzir impostos e custos trabalhistas e elevar ao máximo a liberdade de comércio e investimento.
Qual o primeiro sinal de virada da maré? A crise asiática de 1997, talvez. Para muitos analistas da época, era o contrário: seria o fim do “capitalismo de cupinchas” dos Tigres Asiáticos, marcado pela colaboração entre Estado e grupos econômicos selecionados como pontas-de-lança do desenvolvimento industrial e a introdução do verdadeiro capitalismo liberal anglo-saxão.
Ao menos o FMI fazia o possível para levar as coisas nessa direção, exigindo desregulamentação e abertura dos governos asiáticos. Alguns não conseguiram resistir e soçobraram na crise, como a ditadura de Suharto na Indonésia. Outros, como a Malásia, apontaram para outro caminho, impondo controles mais estritos ao fluxo de capitais e acabando com a anarquia financeira que provocara o colapso de várias moedas da região e jogara milhões na pobreza em proveito de uns poucos especuladores ocidentais.
Sem serem muito notados pelos analistas ocidentais, fascinados pela ilusão da “nova economia” e pelo admirável mundo novo das empresas pontocom, os principais países asiáticos passaram a controlar mais estritamente as taxas de câmbio e os preços e a acumular divisas em enorme escala, aplicando-as em estímulo ao consumo no Ocidente, principalmente nos EUA, por meio de financiamentos abundantes. Um keynesianismo tácito em escala global, ainda que ninguém lhe desse esse nome.
As tentativas de radicalizar ainda mais o neoliberalismo em escala global começaram sutilmente a ser engavetadas. Um marco foi o fracasso da tentativa da OCDE de aprovar um Acordo Multilateral sobre Investimentos que pretendia abolir todas as restrições aos investimentos internacionais. A proposta morreu em outubro de 1998, com a retirada do apoio dos governos da França, do Canadá e da Austrália. A onda de radicalização neoliberal chegava a seus limites.
Nem todos perceberam. Em maio de 2000, Grover Norquist, líder do Americans for Tax Reform, principal lobista antiimpostos nos EUA, anunciou que sua meta, “ambiciosa, mas razoável”, era cortar o governo pela metade até 2025. “Não quero abolir o governo”, esclareceu mais tarde, “só reduzi-lo até um tamanho tal que eu possa arrastá-lo para o banheiro e afogá-lo na banheira”.
A maior parte dos deputados e senadores republicanos assumiu o compromisso de “não mais impostos” exigido por Norquist. Atendendo a seu programa, Bush júnior, em junho de 2001, fez aprovar – com apoio de Alan Greenspan – um corte de 1,35 trilhão de dólares nos impostos pagos pelos mais ricos, cerca de 6% da Receita Federal.
Pouco depois, vieram os atentados de 11 de setembro. Foram seguidos de brutais aumentos dos gastos militares e da imposição de medidas sem precedentes de vigilância dos cidadãos estadunidenses, incluindo monitoramento de telefones, internet e consultas a bibliotecas. Ao mesmo tempo, o governo dos EUA impôs a seus aliados o controle de fluxos financeiros internacionais – há muito usados pelo crime organizado –, com o pretexto de evitar seu uso para o financiamento do terrorismo.
Ao menos na margem direita, o discurso da obsolescência do Estado caiu no vazio. Longe de encolher, o Estado, no seu aspecto bélico e repressivo, voltou a crescer para dimensões sem precedentes fora de grandes guerras – situação que não era e não é a dos EUA, por mais que a propaganda oficial e oficiosa martele o tema orwelliano da “Guerra contra o Terror”.
Pela escala das despesas bélicas comprometidas ou propostas a partir da invasão do Iraque, esboçava-se um keynesianismo militar, à maneira de Hitler e Mussolini. Mas, se isso desapontou a seita ultraneoliberal dos libertarians, amiga dos paraísos fiscais e avessa ao Estado em todos os aspectos, não incomodou os neoconservadores. Sua preocupação era a liberdade das mercadorias, dos dólares e de seus proprietários, não das pessoas que não os têm. A metade do Estado que pretendiam destruir era apenas a esquerda, isto é, os programas e serviços sociais e previdenciários. Nada jamais tiveram contra a repressão de pessoas físicas despossuídas. Haja vista o crescimento sem precedentes do encarceramento e das restrições aos imigrantes.
O garoto-propaganda do neoliberalismo tardio deixou isso claro. Em 2004, quando o filósofo britânico Alain de Botton, em um documentário sobre seu livro Desejo de Status, lhe perguntou por que o Estado não deveria ajudar os necessitados, Norquist não hesitou: “Porque, para isso, é preciso roubar dinheiro das pessoas que o mereceram e dá-lo a quem não mereceu e isso faz do Estado um ladrão”. Então, imposto é roubo? – perguntou Botton. “Com certeza, se for além do necessário para suprir justiça.” – tascou Norquist, que de outra feita comparara os impostos sobre propriedade ao Holocausto.
Mas os sinais de virada da maré, ainda ignorados no Hemisfério Norte, já eram visíveis nos elos mais fracos do sistema internacional. Na Argentina do fim de 2001, o colapso da conversibilidade foi também o das idéias neoliberais e monetaristas, seguido pela ruptura com os credores internacionais e vigorosa intervenção do Estado na economia.
Meses depois, o fracasso do golpe contra Hugo Chávez, seguido pela eleição de governos de centro-esquerda no Brasil e em vários outros países, revelou o desgaste dos modelos neoliberais em quase todo o continente. A virada autoritária e nacionalista da Rússia após a eleição de Vladimir Putin em 2000, seguida até 2003 pela queda e prisão de alguns dos maiores oligarcas surgidos da privatização dos 90, também apontou na mesma direção. Na China, a partir de 2002, Hu Jintao reconheceu os efeitos prejudiciais da anarquia do mercado no desenvolvimento de seu país e sutilmente voltou a introduzir controles estatais e direitos sociais e trabalhistas.
Nos EUA, o primeiro sinal de que a onda neoliberal encontrava seus limites também na margem esquerda esteve, talvez, nas seqüelas da catástrofe de New Orleans. Depois da passagem do Katrina, Thomas Friedman, insuspeito colunista do New York Times, denunciou a mentalidade egoísta por trás dos cortes de despesas que resultaram na deterioração do sistema de proteção da cidade e na falta de recursos para as vítimas. Fez questão de assinalar que gostaria que Norquist estivesse afogando o Estado em alguma banheira de New Orleans quando as represas se romperam.
Alguns ultraliberais atreveram-se a escrever que, mesmo neste caso, o papel do Estado deveria ter sido apenas proteger as propriedades de saqueadores e não prover auxílio, ou mesmo resgate ou evacuação às vítimas. A resposta da opinião pública foi glacial. A popularidade do governo republicano, já abalada pelo fiasco no Iraque, caiu a profundidades inauditas e não mais se recuperou.
Arnold Schwarzenegger, governador da Califórnia desde 2004, foi dos primeiros, ao menos no lado republicano, a dar-se conta. Eleito com apoio dos neoconservadores, como um cruzado contra os gastos públicos disposto a proteger os bolsos da elite californiana das necessidades dos imigrantes pobres, mudou da água para o vinho depois de novembro de 2005, como registrou Mike Davis em Apologia dos Bárbaros (Boitempo, R$ 49, 352 págs.).
Uma greve de professores, bombeiros e enfermeiras o assediou por todo o Estado, protestando contra as propostas de corte de gastos que seriam levadas a referendo. E, para surpresa do governador, a noite da apuração foi uma catástrofe: suas quatro iniciativas foram derrotadas e as pesquisas mostraram uma queda de mais de 25 pontos em sua popularidade.
Mudou de lado de maneira tão inesperada quanto seu personagem nas seqüelas de O Exterminador do Futuro. Para horror de Norquist e similares, trocou a chefe de gabinete republicana por uma democrata e lançou títulos públicos para financiar 68 bilhões de dólares em escolas, rodovias, canais e energia alternativa, coisa para Keynes nenhum botar defeito. Desafiando Bush júnior, lançou um programa de combate ao aquecimento global. Recuperado, chega às eleições de 2008 como um dos principais esteios do centro republicano e da campanha de John McCain.
O ex-presidente do Fed Alan Greenspan, em defesa do seu laissez-faire, ainda insiste em que não deveria ter tentado intervir para conter a bolha imobiliária, argumentando que não há meio-termo entre repressão dos mercados e liberdade total. Como diz Martin Wolf, favorável a mercados livres sob regras robustas, se as pessoas tiverem de escolher depois desta crise que se anuncia onerosa, optarão pela primeira alternativa.
Republicanos ou democratas, trabalhistas ou conservadores, políticos e economistas dos EUA e demais países desenvolvidos estão cada vez mais conscientes da necessidade de que terão de atuar em conjunto entre si e com os grandes países emergentes, principalmente a China, para administrar a crise, remediar a falta de regulamentação do setor financeiro que a provocou, conter a deterioração dos ecossistemas globais e buscar a cooperação entre Ocidente e Oriente na redução dos desequilíbrios globais.
Logo, logo, alguém dirá: “Agora, somos todos pós-keynesianos”. Ou coisa que o valha. Já em janeiro, Ben Bernanke, presidente do Fed, explicitou que acharia uma boa idéia um pacote temporário de estímulo fiscal. No mês seguinte, aprovou-se um pacote de 168 bilhões em tempo recorde – não outro corte nos impostos dos ricos, mas uma restituição a contribuintes com renda até 75 mil dólares anuais e um subsídio aos isentos. Enquanto isso, nos jornais de negócios, os fundos estatais da China, dos Emirados Árabes e Tigres Asiáticos, antes pintados como conspiradores contra o livre mercado e a segurança do Ocidente, viraram cavaleiros de armadura brilhante prontos a salvar os grandes bancos privados, incapazes de administrar seus próprios riscos.
Mais recentemente, o francês Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do FMI, apelou aos demais governos com recursos para tanto para que não se limitem à política monetária e recorram a políticas fiscais anticíclicas: “A necessidade de intervenção pública na economia está ficando mais evidente”, disse ele ao jornal Financial Times em 7 de abril. Já em setembro de 2007, aliás, quando se apresentou como candidato ao conselho executivo da instituição, citara Keynes na primeira reunião do Fundo, em Bretton Woods, em 1944: “Todas as crianças deveriam receber três presentes ao nascer, um dos quais um casaco multicolorido, como lembrança perpétua de que pertencem ao mundo todo”.
Robert Zoellick, paladino do livre-comércio e da finada Área de Livre Comércio das Américas no primeiro governo Bush júnior, tem agora outra prioridade: como presidente do Banco Mundial, apela aos países desenvolvidos por uma ajuda de 500 milhões de dólares para financiar a compra de sementes em países ameaçados de fome. Strauss-Kahn lembra aos ricos que “não é só uma questão humanitária”. Os desequilíbrios comerciais os afetarão (vários países, da Argentina à China, passando por Egito e Índia, já restringem a exportação de grãos) e “esse tipo de problema às vezes acaba em guerra”.
Já a direita brasileira, embora inclua alguns luminares cuja proporção entre músculos e cérebro é supostamente menos desfavorável que a de Arnie, foi menos perceptiva. Mesmo depois que o governador da Califórnia completara sua pirueta política, continuou a bater nas mesmas teclas e nada aprendeu com a segunda derrota. Pelo contrário, seus porta-vozes acadêmicos esbravejam contra qualquer possibilidade de o Banco Central olhar para além das metas de inflação e seus políticos e comunicadores relançaram o discurso do “Estado mínimo”, no exato momento em que os próprios EUA já lhe encomendavam o caixão.
Mínimo inclusive na grafia, pois a revista que melhor expressa suas posições, além de fazer de cada página um editorial em favor do livre mercado – quando não teorias da conspiração dignas de tablóides mais especializados –, chegou ao preciosismo de passar a grafar “estado” com minúscula, acreditando que com isso “demolirá a noção disfuncional de que se pode esperar tudo de um centralismo provedor”. É um discurso que, para usar uma palavra que lhes é muito querida, já começa a soar, digamos assim, jurássico.
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