Com a recente divulgação pelo IBGE da edição 2006 da Pesquisa Industrial Anual (PIA), a série de informações estruturais sobre a indústria brasileira atingiu, enfim, seu décimo ano de cobertura após a quebra do encadeamento com os dados anteriores, causada pela profunda revisão metodológica introduzida em 1996. Com isso, pela primeira vez desde a estabilização monetária de 1994, pode-se observar a trajetória da indústria brasileira na perspectiva temporal de uma década, intervalo que os economistas concordam em estabelecer como mínimo para propiciar análises estruturais mais robustas. Ainda que baseada em alguns poucos indicadores agregados, pois mais não caberia no curto espaço dessa coluna, uma primeira exploração dos novos números da PIA mostra um leque de transformações experimentadas pela indústria brasileira, algumas já amplamente percebidas, outras nem tanto, todas sugestivas de que esses 10 anos não foram exatamente benevolentes com a atividade industrial no país.
Aplicando-se deflatores setoriais, estimados a partir dos dados do IPA-FGV, para o conjunto da indústria extrativa e de transformação, exclusive petróleo (extração e refino), constata-se que, em relação a 1996, as receitas das empresas industriais em 2006 estavam 32% maiores em termos reais, montante satisfatório se comparado ao obtido na década anterior, mas irrisório se anteposto ao desempenho alcançado por diversos países emergentes. Um fator que contribuiu para isso foi a evolução muito positiva do comércio exterior: entre 1996 e 2006, a parcela exportada da produção industrial expandiu-se de 15% para 24% da receita das vendas, enquanto a parcela importada manteve-se praticamente constante, na casa dos 15%. Também merece registro o aumento de 32% no pessoal ocupado pela indústria, tendo sido possível reverter a tendência à expulsão de mão-de-obra que caracterizou a indústria na década de 1990. Essa expansão do emprego, porém, não foi acompanhada nem de longe pela folha de salários, que encolheu mais de 20% em termos reais entre 1996 e 2006. Com isso, a parcela dos salários nas receitas caiu de 14% para 10%, sendo esse resultado um efeito da redução do salário médio real e não do aumento da produtividade, como seria desejável. Também a evolução dos custos das operações industriais foi bastante desfavorável, tendo crescido 47% na década em questão. Com isso, o peso dos custos de produção (inclusive salários) saiu de 61% do valor das receitas em 1996 para 69% em 2006, certamente contribuindo para o achatamento das margens da atividade industrial. Tudo somado, verifica-se uma indesejável perda de capacidade de geração de renda da indústria, expressa pela redução de 7 pontos percentuais do peso do valor adicionado no valor bruto produzido, de 47,1% em 1996 para somente 40,1% em 2006.
Uma parte da explicação para essas tendências pode ser encontrada nas mudanças ocorridas na composição da atividade industrial no período. No plano regional, houve um significativo avanço da produção industrial fora da região Sudeste, sugerindo que o processo de desconcentração da atividade industrial ganhou algum fôlego. De fato, a participação do Sudeste, medida em termos de geração de valor adicionado industrial, recuou de 68,4% em 1996 para 63,1% em 2006. É importante ter claro que esse crescimento da produção fora do Sudeste refletiu não a transferência de produção originária dessa região, e sim a incorporação de novas atividades relacionadas à expansão das fronteiras agrícola e mineral nas regiões Norte e Nordeste, pouco intensivas em trabalho. Quando a variável observada é o porte das empresas, é notável o processo de concentração da produção que ocorreu nos dez anos analisados. A parcela do valor adicionado obtida em empresas com mais de 500 empregados chegou à marca de 70% em 2006, ficando apenas 17% com as empresas de médio porte (100 a 499 empregados) e 13% com as pequenas empresas (5 a 99 empregados), ante 62%, 23% e 14,6% em 1996, respectivamente. A perda de densidade do segmento de pequenas e médias empresas é certamente um dos fatores responsáveis pela piora observada nos salários pagos pela indústria.
Mas quando a variável analisada é a composição setorial da produção que as mudanças tornam-se mais nítidas. Nessa composição, os setores produtores de commodities (agronegócios, mineração e metalurgia, química básica, etc.), que formam a base da indústria, expandiram seu peso no valor adicionado total da indústria de 29,2% em 1996 para 36,3% em 2006. Isso ocorreu em detrimento do miolo da indústria, que reúne as indústrias tradicionais, como alimentos e bebidas, têxtil e confecções, editorial e gráfica, produtos de metal, artefatos plásticos e outros, com forte presença de pequenas ou médias empresas, que simetricamente apresentaram queda da participação de 45% para 37% nesses dez anos. Menos mal que o topo da indústria, que congrega os sistemas produtivos da mecânica e da eletrônica, além de outros setores de conteúdo tecnológico mais elevado, conseguiu se sustentar, mantendo a participação na geração do valor industrial na casa dos 26 a 27%, sugerindo que a transição estrutural em curso no Brasil tampouco pode ser resumida a um processo puro de regressão tecnológica da atividade industrial.
Em 1996, muitos defendiam a tese de que a fase de estabilização da economia estava consolidada e que um período de intensas mudanças estruturais estaria em gestação. A paisagem descortinada pela série de dados da PIA desde então até 2006 revela que não há mudanças estruturais muito visíveis, nem mesmo na linha do horizonte. Se os dados não deixam dúvida de que o tamanho da indústria aumentou no período, são igualmente bastante enfáticos em mostrar que não houve uma melhoria significativa da qualidade dessa indústria, seja na capacidade de gerar valor (salários e lucros), seja na velocidade da evolução da produtividade, seja no alcance do processo de modernização da indústria tradicional, ou seja no efetivo desenvolvimento dos setores de maior intensidade tecnológica. Esse quadro somente deverá se modificar quando entrar em cena um regime competitivo completamente distinto do que predominou no período analisado, no qual prevaleça um nível de proteção efetiva variável para a indústria, pragmaticamente ajustado de acordo com a capacidade de resposta das empresas e firmemente apoiado em uma taxa de câmbio competitiva e em uma ativa política industrial pró-inovação.
David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade GIC-IE/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras. www.ie.ufrj.br/gic
gic@ie.ufrj.br
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