quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A economia financeira e a lógica do cassino

Carlos Lessa

Em recente visita ao Brasil, Joseph Stiglitz afirmou, apoiado na melhor doutrina keynesiana, que os bancos centrais europeus e o Fed perderam eficácia para reanimar suas respectivas economias. Nos últimos 90 dias, houve uma sucessão de reduções significativas de juros em economias que já praticavam juros bastante reduzidos. Keynes chamava a atenção que a preferência pela liquidez, característica da situação de crise, não consegue ser revertida pela redução de juros.

Stiglitz lembrou que a economia japonesa, marcada por uma forte recessão durante os anos 90, foi acompanhada pelo aumento de poupança e cenário de juros reais negativos. Isto fez com que, além da migração das matrizes japonesas para fora do mundo, as poupanças fossem todas orientadas para aplicações puramente financeiras, sem reanimar o crescimento da economia nacional japonesa.

A hipertrofia arrogante do neoliberalismo, quando não cancelou, subordinou a política fiscal às orientações monetárias, financeiras e cambiais. Despojou os Estados nacionais de suas instituições interventoras na economia, privatizou tudo o que pôde e encapsulou as regulações de políticas setoriais específicas em agências em parte blindadas à atuação política do poder Executivo. Na crise atual, não sabem a extensão em que estão a securitização e os "produtos" financeiros engendrados pela criatividade bancária (como formas de competição no mercado de capitais) dos derivativos multiplicados fora do controle dos bancos centrais. Não sabem a extensão e a complexidade da rede que a financeirização do mundo engendrou sob o hino triunfal da supremacia do mercado. Fernandinho Beira-Mar tinha contas bancárias nos principais bancos americanos, um no Kuwait e em outro no Paquistão. As relações intra-bancos de grande nome e tradição se enlaçam pelos derivativos, pelos fundos complexos e alavancados via paraíso fiscais. O Banco Central é sempre surpreendido a extensão e variedade de conexões pouco convencionais.

Não é esta a situação do Banco Central brasileiro, super equipado institucionalmente, e agora reforçado com absoluto arbítrio pela MP 443. Pratica o mais elevado juro real do planeta, com a esperança de trazer para o Brasil dólares em busca de uma apetitosa remuneração. Acredita que, com este juro estratosférico, beneficia todos os fundos de pensão complementares. Considera que, ao forçar o Ministério da Fazenda a priorizar os recursos para o pagamento dos juros, contém e atenua a propensão da política fiscal de se espalhar em gastos não-financeiros. Altos juros e deficiências na infra-estrutura de energia e logística inibem o investimento privado e reduzem componentes perigosos de tendência ao crescimento.

Nosso Banco Central sabe que, com seus juros altos, situa os bancos brasileiros nas mais elevadas taxas de rentabilidade, pois tem o cuidado de beneficiá-los, aprovando tarifas que, por si só, já lhes dão lucros operacionais. Vê na âncora cambial o grande instrumento de controle da alta de preços em reais. Acha que, mantendo elevado o juro real, atrai dólares que valorizam o real e ampliam as reservas cambiais. São estas as reservas que blindam, em parte, o Brasil do vendaval. A economia financeira se baseia na confiança recíproca entre os operadores e os que gostam de jogar neste cassino. Se hoje o Banco Central brasileiro começasse a baixar seus juros, suspeito que reduziria significativamente a confiança. Aliás, quando anuncia que vai socorrer operações de montadoras de veículos, projetos imobiliários, bancos em situação difícil etc, com cada anúncio mina a confiança.

Seria necessário reexercer, na plenitude, a soberania nacional. Deveria-se ter conhecimento real da extensão em que empresas, inclusive bancos atuantes no Brasil, se debruçaram e se enredaram em derivativos à escala cósmica. Todos que tivessem haveres ou deveres em moeda estrangeira deveriam registrá-las no BC. Não podemos dormir num dia com Sadia, Aracruz, Votorantim e Vicunha em boa situação e descobrir, pela manhã, que nem elas próprias sabem a extensão das suas perdas. No caso da Aracruz evoluiu de R$ 1,5 bilhão para, em oito dias, U$ 2,5 bilhões.

Todas as operações cambiais deveriam ser centralizadas no Banco do Brasil. E o Banco Central esclareceria o modo pelo qual esses recursos vitais seriam manejados de modo a proteger o escudo das reservas cambiais.

Foi interessante a fusão do Itaú com o Unibanco. Tenho acompanhado a discussão pela qual o Banco do Brasil deveria absorver outras instituições bancárias para conquistar o tamanho Itaú+Unibanco, que justificou seu matrimônio para fazer frente ao Santander (que, no Brasil, cresceu pela proibição de o Banco do Brasil adquirir o Banespa). Quero, independente do mérito das aquisições que o Banco do Brasil venha a fazer, votar a favor de uma "holding financeira" que integre as operações do Banco do Brasil com as da Caixa Econômica; que recupere, para o Banco do Brasil, as atividades de Banco Postal, nas quais foi pioneiro. Isto seria percebido pelo povo e pelo setor empresarial como o nascimento de um complexo bancário de porte.

As operações perdedoras dos bancos privados não devem ser transferidas a critério do Banco Central calçado nos superpoderes da MP 443. O banco privado perdedor não pode quebrar, mas os seus donos não podem migrar para Miami ou Cayman. Se a previdência complementar estiver acumulando perdas patrimoniais por operações em renda variável, cabe rediscutir o tema e fazê-lo retornar ao âmbito do sistema previdenciário oficial.

A crise já está castigando - e vai castigar - uma quantidade imensa de pessoas que não têm culpa nem participação na financeirização. O modo de defendê-las é discutindo um projeto nacional para o Brasil. Porque não creio que exista no mundo - a não ser no BC brasileiro - possibilidade de retorno à globalização financeira do passado.

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