terça-feira, 18 de novembro de 2008

Inflação e deflação de ativos

Rafael Fagundes Cagnin e Marcos Antonio Macedo Cintra

A partir da década de 1980, o dinamismo da economia americana e, por conseguinte, da economia mundial, tem sido condicionado pelo movimento de inflação e deflação de ativos. Na década de 1990, a euforia nas Bolsas de Valores com as inovações em tecnologia de informação desencadeou dois efeitos principais: do lado da oferta, possibilitou a realização de investimentos ao ampliar a disponibilidade de financiamento às empresas; do lado da demanda, estimulou o consumo das famílias detentoras de ativos financeiros. O fortalecimento do patrimônio das empresas e das famílias ampliou a capacidade de endividamento, incentivando os gastos em investimento e consumo, realimentando a euforia.

Entre 2000 e 2001, enquanto a riqueza financeira se contraia, condicionada pela sucessão de escândalos contábeis e pela revisão das expectativas de lucro dos negócios da "nova economia", as empresas cortaram os investimentos e reduziram dívidas. A recessão econômica que acompanhou a reversão do ciclo de ativos, no entanto, foi suavizada pela manutenção dos níveis de consumo e pela aceleração dos investimentos em construção civil, dinâmica facilitada pelas políticas monetárias e fiscais expansionistas no início do governo de George W. Bush. A contração durou entre março e novembro de 2001, um dos mais brandos e breves períodos recessivos nos EUA. A valorização das residências poupou os americanos de uma retração maior. O papel desempenhado pelas ações no estímulo ao consumo agregado das famílias foi substituído pelos imóveis.

A maior influência do ciclo de ativos se deu por meio da perda relativa de importância da renda corrente sobre a decisão de consumo das famílias e de sua capacidade de endividamento. Essa característica esteve fortemente relacionada às mudanças estruturais do sistema financeiro americano. A expansão dos investidores institucionais - fundos de investimento e de pensão, fundos hedge - ampliou o acesso das famílias a diferentes ativos financeiros e permitiu o aprofundamento dos mercados de títulos securitizados e dos derivativos. O acirramento da concorrência entre bancos e investidores institucionais levou, por um lado, a um intenso processo de inovação financeira e, por outro, à busca, pelos bancos, de oportunidades de negócios por meio da expansão do crédito às famílias. Os riscos dessas operações foram geridos por meio da exigência de garantias (imóveis, automóveis etc.) e do desenvolvimento de técnicas de transformação do crédito bancário em instrumentos negociáveis, que no caso das hipotecas residenciais contou com o apoio das agências federais - Fannie Mae e Freddie Mac.

As famílias americanas puderam, então, ampliar seus ativos imobiliários e o nível agregado de consumo por meio de diferentes instrumentos de crédito, incluindo aqueles que transformavam a alta nos preços dos imóveis em poder de compra (cash). Se a valorização de ativos colaborou para a expansão do consumo, impulsionando a economia mundial, sua desvalorização pode gerar um efeito oposto. Um "efeito pobreza" sucede o "efeito riqueza".

De acordo com o Office of Federal Housing Enterprise, entre abril de 2007 e julho de 2008, o valor das residências acumulou perda de 5,8% (com ajuste sazonal). A crise no mercado de crédito imobiliário, engendrado pela desvalorização do colateral e pela inadimplência das operações, transformou-se rapidamente em uma crise mais ampla e aguda, graças a operações sofisticadas de securitização ("produtos estruturados") e ao comportamento imprudente dos agentes financeiros. A queda do valor dos ativos de grandes instituições financeiras, algumas vezes seguida de decretação de falência ou de intervenção do Federal Reserve e/ou dos tesouros nacionais europeus, condicionou a contração do crédito e a forte queda nas Bolsas de Valores. De acordo com a Federação Mundial das Bolsas de Valores, a desvalorização da riqueza acionária global somou US$ 29,5 trilhões entre outubro de 2007 e outubro de 2008. Além disso, as instituições financeiras globais já registraram mais de US$ 800 bilhões em prejuízos.

Diferente de 2001, não há outro ativo importante que compense a contração da riqueza imobiliária e acionária das famílias americanas. A expressiva demanda chinesa e indiana e as baixas taxas de juros internacionais favoreceram a tomada de posições especulativas nos mercados de commodities, ações, bônus e moedas dos países emergentes. Mas esse processo também passou a emitir sinais evidentes de esgotamento.

Tampouco há instituições financeiras dispostas a expandir o crédito. O sistema financeiro americano (e europeu) enfrenta um acentuado processo de desalavancagem, acentuado pela crise de confiança instaurada após a quebra do banco de investimento Lehman Brothers. Nos EUA, o estoque de dívidas do setor financeiro alcançou US$ 16,5 trilhões, o equivalente a 115,5% do PIB americano no segundo trimestre de 2008. Além disso, o elevado endividamento das famílias pode dificultar o processo de retomada do crédito e de recuperação da economia. O volume de dívida das famílias americanas atingiu US$ 14 trilhões, correspondendo a 98% do PIB e 130% da renda disponível (após o recolhimento de impostos). Durante a fase de expansão do ciclo econômico (2002-2006), a taxa de crescimento das dívidas das famílias foi superior a 10%, no segundo trimestre de 2008 caiu para 1,4%.

Mesmo com a gigantesca intervenção dos principais bancos centrais (EUA, área euro, Reino Unido, Canadá, Suíça, Japão, China etc.), persiste o risco de se configurar um duplo processo de contração do crédito, sobretudo nos EUA, no Reino Unido, na Espanha e nos países do Leste Europeu. Por um lado, os bancos deverão procurar recompor e reestruturar seus balanços, ampliando a preferência por ativos líquidos (títulos da dívida pública). Por outro, as famílias, altamente endividadas e relativamente mais "pobres", procurarão diminuir o consumo e aumentar a poupança para pagar a dívida velha. Esse processo pode aprofundar a retração da economia real, com impactos no emprego, na inadimplência das dívidas, instaurando um círculo vicioso.

Os dados do desempenho econômico dos EUA no terceiro trimestre do ano já mostraram o efeito negativo dessa destruição de riqueza sobre o consumo agregado das famílias que se contraiu em 3,1% em relação ao trimestre anterior, puxando a atividade econômica e o emprego. Os investimentos residenciais caíram 19,1% no mesmo período. A contração do PIB americano de 0,3% só não foi maior devido às contribuições positivas das exportações líquidas e dos gastos públicos em defesa. Vale ressaltar que esse desempenho ainda não refletiu integralmente os impactos da crise de confiança gerada pela quebra do Lehman Brothers que condicionou um acentuado movimento de desvalorização dos ativos financeiros (e das moedas fracas) em âmbito global. Diante desse cenário de contração do crédito e da riqueza, o caráter contra-cíclico da política fiscal passa a ocupar um papel central para o dinamismo americano e, por conseguinte, da economia mundial.

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