segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Chamem o padre Luca Paciolo para exorcizar o subprime

Antoninho Marmo Trevisan

O Tratactus de Computis et Scripturis ("Contabilidade por Partidas Dobradas"), do padre Luca Paciolo, publicado em 1494, estabeleceu um conceito inexorável: para cada débito deve existir crédito equivalente. A sábia fórmula já era válida na Idade Média, quando viveu o antológico frade toscano, reconhecido como o pai da contabilidade. No contexto da sofisticada economia contemporânea, sua releitura é ainda mais pertinente: para cada aplicação de recursos é preciso haver sempre a fonte identificada.

O desrespeito ao clássico ensinamento, que os contabilistas aprendem no primeiro ano do seu curso superior, sintetiza a causa da pandêmica crise do subprime surgida nos Estados Unidos. Para um mesmo bem, representado pelo recurso aplicado na compra do imóvel, foram criadas inúmeras fontes de recursos, mas sem o necessário lastro físico. É como se fosse possível emitir uma fatura "fria", sem que a mercadoria tenha existido para tal.

Felizmente, o socorro estatal, à custa do agravamento do déficit público norte-americano e da sangria de reservas européias e asiáticas, está restabelecendo o pulso e a respiração dos sistemas financeiros e do crédito. Resta a luta contra a recessão, que, apesar de não se manifestar nos balanços do terceiro trimestre de várias economias, poderá se apresentar acentuado nos demonstrativos financeiros do último trimestre do ano.

Na recomposição dos mercados, fica dolorosa lição: o exagero da omissão estatal na regulação e fiscalização dos fluxos financeiros exige agora a mais perversa das intervenções governamentais, que é a utilização do dinheiro dos impostos para evitar o caos. Ruim dessa forma, pior sem ela.

É natural, portanto, o ceticismo global no tocante à ordem econômica prevalente nas últimas três décadas. Parece existir certa indignação ante os papéis desempenhados pelas lideranças mundiais e um desconforto quanto às políticas empregadas. Paira um quê de desconfiança sobre os atores determinantes nesse período (governos, segmentos da mídia, analistas, sistema financeiro, certificadores, consultores e determinada linha acadêmica).

É possível algum tipo de reação contra esses protagonistas pelos que se sentiram lesados e um olhar positivo aos que se apresentaram críticos dessa corrente e partidários da geração de riqueza a partir da produção. A fragorosa derrota dos republicanos nas eleições presidenciais dos Estados Unidos é o melhor exemplo desse movimento, pois o processo de retomada da economia tem forte vínculo com a política. Afinal, passa pelo restabelecimento de lideranças, esfaceladas no final melancólico do governo de George W. Bush, situado no epicentro da crise. Ademais, em todo momento sensível, o Estado assume papel relevante, induzindo o setor privado e a sociedade a não paralisarem o processo de trocas comerciais. Assim, suas intervenções assumem caráter redentor, enquanto o setor privado, avesso ao risco momentâneo, tende a um comportamento mais passivo.

No Brasil, o governo já está operando para irrigar o crédito, manter os juros em patamares que estimulem os investimentos e segurar a taxa cambial próxima de dois reais por dólar. Também deverá acompanhar o nível do desemprego e a pressão sobre os mais pobres, de modo a não se configurar a idéia de que os lucros são privatizados e os prejuízos socializados.

O fato é que há uma expectativa por soluções que minimizem os efeitos da crise mundial. Enquanto isso, prevalece o instinto de sobrevivência, e esta virtude atávica faz com que os empresários se lancem na busca de novos parceiros comerciais, busquem instituições financeiras e consultores profissionais, reconhecidos pela seriedade, tradição, senso ético e capacidade de vencer turbulências.

No universo empresarial, isso significa excelente oportunidade de prospectar novos negócios e, sobretudo, de fidelizar os relacionamentos b2b. É hora de renegociar com clientes e fornecedores. A palavra de ordem é levantar da cadeira e apresentar soluções a quem precisa. O presente teatro de operações é propício aos bons guerreiros, aqueles capazes de produzir receitas ao invés de buscar dinheiro nos ainda céticos bancos. É preciso ter em mente que há uma nova ordem econômica, na qual produtos e serviços diferentes e inovadores serão demandados. Infelizmente bons negócios podem ser abandonados e pechinchas aparecerão se bem prospectadas.

As empresas voltam-se à produção, à sua atividade-fim e à racionalidade, retomando o velho e conservador papel da tesouraria. As finanças criativas perderão terreno para a gestão contábil de recursos. Em todos os segmentos, propostas comerciais típicas de parceiros, prudentes e realistas deverão ser as vencedoras no mercado emergente da crise. Nesse contexto, terão sucesso os que exercitarem humildade e paciência para compreender, negociar, ceder e apoiar os mais aflitos.

Frade Paciolo descrevia ser comum entre os negociantes católicos medievais marcar os livros contábeis com o sinal da Cruz para afugentar o demônio. Pois bem, para exorcizar os fantasmas do subprime e livrar as empresas de suas maldições, é preciso fé e ação no trabalho e na ética, atitude gerencial focada na instabilidade e confiança nas boas práticas empresariais, incluindo a velha e boa contabilidade.

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