segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Overshooting cambial: causas e soluções

Mario Cordeiro de Carvalho Junior

O mercado de câmbio brasileiro apresentou-se bastante volátil no último bimestre. A volatilidade indica a presença de "overshooting", mas qual a explicação para tal fenômeno? A grande imprensa e alguns analistas apontam a crise internacional associada à especulação feita pelos agentes econômicos - empresas e bancos - como causa. Na verdade, a especulação é apenas o elemento de aceleração do realinhamento cambial em curso provocado pelos choques: I) do boom e "secagem" do crédito às exportações em moeda estrangeira para financiar as vendas externas; e II) pela crescente vulnerabilidade do "balance sheet" (balancete) do setor privado e do governo.

No tocante ao financiamento às exportações, cabe mencionar que há três formas, aprofundadas em três episódios distintos. A primeira é o ACC/ACE, modalidade tradicional de oferta de crédito, em que há poucos riscos para os bancos, pois a operação é "lastreada" em cada venda (ou conjunto de) de mercadorias para o exterior. No caso, o exportador brasileiro solicita financiamento a um banco brasileiro, que analisa o risco de entrega do bem, ou de recebimento do importador, e abre um limite de crédito. Por sua vez, o exportador apresenta os documentos representativos da operação, e o banco, no Brasil, por ter uma linha de crédito com outro banco, no exterior, internaliza no Brasil os dólares lá de fora, transformando as divisas em reais, e entregando moeda nacional ao exportador brasileiro. Este assina um contrato em que se compromete a entregar os dólares (ou outra moeda conversível) numa data futura, recebe os reais com algum deságio, repassa o risco cambial para o banco no Brasil, que, por sua vez, para se proteger, vai ao mercado futuro e faz uma operação de hedge cambial para a data de vencimento do débito do exportador, no máximo 180 dias (renováveis). A oferta de moeda estrangeira para financiar as exportações ganhou força quando o país estava insolvente nos anos oitenta, em função da crise da dívida externa.

A segunda forma começou a ocorrer em meados dos anos noventa em função do boom de venda de soja. A escassez de recursos para o plantio levou as tradings companies, especializadas nesse negócio, a obterem crédito no mercado externo e adiantarem reais aos agricultores para financiar a produção, contra a entrega física da mercadoria. Na esteira desse movimento, grandes agricultores de commodities conseguiram ter acesso ao mercado internacional de forma direta, oferecendo a produção e as terras como garantias, seguro, etc. e assim obtinham recursos perenes para o plantio. A conjuntura dos preços internacionais era favorável (e crescente) e, como os recursos em moedas estrangeiras eram menores que as receitas obtidas com as vendas externas, na ausência de catástrofes naturais ou de mudanças nas regras e políticas de governo, a expectativa de lucro era bastante superior ao risco cambial envolvido no empréstimo. Isto fez com que o agricultor e as empresas pudessem absorver e embutir o risco cambial nas suas receitas de exportações.

Finalmente, a terceira modalidade surgiu e ganhou corpo no triênio 2001/2003, se aprofundando a partir daí. Sem dúvida, a exuberância então reinante no mercado internacional permitiu que inúmeras empresas exportadoras deixassem de operar com os tradicionais ACC/ACE e passassem a trabalhar com o chamado pré-pagamento das vendas externas. Montaram-se carteiras de recebíveis internacionais, transferiram-nas para o exterior, com os pré-pagamentos somando, em média, por empresa, a quase um ano de receitas de exportação. Esses recursos estrangeiros foram convertidos em reais e internalizados no país. As empresas, por sua vez, se comprometeram a entregar as mercadorias a serem exportadas no futuro (ao longo de um ano ou pouco mais) e, graças ao acesso aos recursos em moeda estrangeira, começaram a tocar os seus projetos de expansão de capacidade produtiva voltada para o mercado interno e externo.

O problema é que, quando se obtém pré-pagamento de exportações, cabe à empresa exportadora tomar o risco cambial da operação, iniciando-se então o processo de se operar mais intensamente com as diversas formas de hedge cambial. As empresas exportadoras foram, na realidade, "coagidas, compelidas e obrigadas" a utilizarem derivativos exóticos, pois não existe, no Brasil, mecanismo de proteção cambial para um ano, quando muito, para noventa ou cento e oitenta dias, no máximo. Em outras palavras, o mercado é incompleto.

Enquanto o Bacen conduziu a sua política monetária (e cambial) administrando as expectativas dos agentes econômicos em relação a câmbio e aos juros, não surgiram problemas. Estes só surgiram porque houve "parada brusca". Ou seja, somente quando as linhas de crédito internacional começaram a secar, os agricultores e as empresas do agronegócio não tiveram mais acesso ao mercado internacional, e as empresas tomadoras de pré-pagamento tiveram perdas no mercado de derivativos, por apostarem e acreditarem no real, e ainda constatarem que haveria (como já há) dificuldades para refinanciar os pré-pagamentos de exportação. Isso significa uma alteração da maturidade e da estrutura das obrigações em dólares, que impacta obrigações dos balanços, tanto do setor privado quanto o de pagamentos do país. A conseqüência é a taxa de câmbio nacional entrar em movimento de depreciação acentuada, permitindo que a crise internacional em curso lá fora atinja a economia brasileira, mostrando que os fundamentos econômicos não são tão sólidos.

De fato, os fundamentos estão frágeis porque nunca antes na história de um país se conseguiu viver durante tanto tempo com uma taxa de câmbio efetiva sobrevalorizada e com uma taxa de juros real tão elevada. Numa situação como essa só há duas soluções: milagre ou crise cambial. Deus existe, é brasileiro, e sabemos que as linhas externas de trade finace voltarão como no passado, os bancos internacionais - que sobrarem - vão refinanciar os pré-pagamentos das exportações das empresas nacionais, e, graças à Deus até já conseguimos obter um "cheque especial" de US$ 30 bilhões do Fed, melhor que o obtido do FMI em 2002. Isso é fruto tanto da seriedade do "investment grade", quanto também por sermos "o candidato" a entrar no G-8. Além disso, depois de uma breve interrupção do viés de alta dos juros, devemos elevar a nossa taxa de juros doméstica para conter a inflação e atrair um pouco de capital externo proveniente dos tributos dos contribuintes estrangeiros, e continuar a dançar e a viver sob o "multiplicador financeiro", razão pela qual recentemente Paul Krugman asseverou que todos os povos são atualmente iguais aos brasileiros.

Na hipótese de Deus julgar que estamos numa fase de Sodoma e Gomorra por vivermos sob a ilusão de que déficits crescentes no balanço de pagamentos são financiáveis e por acreditarmos que US$ 200 bilhões de reservas são suficientes para mitigar choques externos, como prega o presidente do Banco Central, então poderemos constatar as palavras de Keynes: "a sound banker, alas! Is not one who foresees danger and avoids it, but one who, when is ruined, is ruined in a conventional and orthodox way along with his fellows, so that no one can really blame him". Como os amigos do Meirelles somos nós, a conta será paga sob a forma de maior instabilidade cambial, tributação, imposto inflacionário, salários menores medidos em dólares, e perda de produto e emprego.

Nenhum comentário:

Minha lista de blogs