quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Brasil e a crise

Eliana Cardoso

A queda das bolsas foi a primeira e mais visível manifestação do contágio, nos países emergentes, da crise originada nos países avançados. Até o fim de outubro de 2008, a bolsa em dólares caíra 76% na China, 72% na Rússia e mais de 65% na Coréia do Sul e na Turquia. No Brasil, entre meados de maio e a segunda semana de novembro, a queda do Ibovespa em dólares chega a 60%.

Agora, a crise financeira atinge a economia real. A recessão americana se revela na bancarrota de empresas e no aumento do desemprego. Diante da ameaça de depressão, economistas (como Paul Krugman) recomendam farta expansão dos gastos públicos. Os EUA podem se dar ao luxo de tomar o remédio keynesiano, porque não existe fuga de capitais do país. O dólar tem se valorizado. Não há preocupação com a inflação (que deve cair com o nível de atividade e a valorização do dólar). Ainda mais importante, o desequilíbrio fiscal não é estrutural, mas advindo de uma guerra que chega ao fim e o pacote fiscal anticíclico incluiria aumento temporário de gastos que não criariam rigidez orçamentária no futuro. Mesmo assim, Ben Bernanke, presidente do Fed, adverte que o tamanho do déficit público impõe limites a medidas fiscais para reanimar a economia.

Os estragos da turbulência na economia brasileira apareceram em outubro. Empresas já promovem férias coletivas. Postergam investimentos. Adiam empreendimentos. A indústria automobilística, com peso de 5,4% no PIB, prepara-se para crescimento zero em 2009. Ao contrário do governo americano, o brasileiro não pode adotar a medicina keynesiana, apesar do colchão de reservas.

No passado, a desvalorização cambial advinda de choques externos criava pelo menos dois graves problemas para o governo brasileiro: impacto inflacionário e aumento da relação dívida pública/PIB (por causa da parte da dívida indexada ao dólar). O BC se via obrigado a aumentar a taxa de juros para controlar o efeito inflacionário da desvalorização. Essa medida, por sua vez, também contribuía para novo aumento da dívida pública. Para manter a confiança na solvência do setor público, o governo aumentava o superávit primário. Tanto a política monetária quanto a fiscal multiplicavam o impacto contracionista do choque externo.

No presente, ao contrário do que ocorria no passado, a desvalorização do real não se traduziu num aumento da dívida pública, mas em lucro, que criou margem para ações de socorro financeiro emergencial. As reservas internacionais altas serviram para amortecer parte do choque da desvalorização, que trouxe consigo perdas para empresas que especularam no mercado de derivativos de câmbio.

As reservas dão ao BC espaço para esmorecer flutuações bruscas da taxa de câmbio, mas não a capacidade de evitar a tendência de valorização do dólar, cujo impacto inflacionário já transparece nos índices de preço. O IGP-DI subiu de 0,36% para 1,09% de setembro para outubro e o IGP-M, 0,80% em novembro. As expectativas de inflação também subiram (segundo o "Boletim Focus") para 6,4% neste ano. A projeção para 2009 avançou pela quarta semana consecutiva para 5,2%.

A inflação em alta, apesar da redução do ritmo de atividade, impede uma política agressiva de redução da taxa de juros, que poderia tanto minorar a queda no nível de atividade quanto abrir espaço para uma política fiscal mais expansionista. Não pode. O governo já contratou aumentos de salários para os próximos anos, quando a receita dos impostos deverá acompanhar a queda no ritmo de atividade. A despesa com servidores federais em 2008 em relação a 2007 deve subir 10% acima da inflação. Aumentos já concedidos a servidores e mecanismos de reajuste do piso previdenciário continuam a empurrar a fatia de despesas obrigatórias.

Enquanto as reservas permanecerem maiores do que a dívida pública externa, o governo tem, por algum tempo, receita de lucros do BC para ajudar a reduzir o aumento do déficit fiscal e da dívida pública. Mas, mesmo se o governo revisse para cima a meta de inflação, não poderia evitar uma redução do crescimento. O crescimento mais alto da demanda interna em relação à externa acarretaria déficits comerciais e em conta corrente difíceis de financiar, pois (segundo o "Boletim Focus") o investimento externo deve despencar em 2009.

É possível que o Banco Central só tenha a oportunidade de diminuir os juros básicos quando o risco-país começar a cair. Isso não deve acontecer antes que a situação americana permita um aumento da liquidez internacional. Ao mesmo tempo, para preservar a confiança no Brasil, será preciso atravessar a crise econômica sem aumentar a dívida pública no ano que vem, nem elevar impostos nos anos seguintes. Para tanto, o governo precisa rever o orçamento. Para preservar as obras do PAC, o ritmo de crescimento da folha de pagamentos do funcionalismo público nos três Poderes precisa de um limite legal.

A licença para gastar seria um pacto faustiano: a troca de um ganho de curto prazo por um grande sacrifício no longo. Você se lembra do Dr. Fausto, respeitável acadêmico alemão, que, insatisfeito com os limites do conhecimento tradicional, contratou os serviços de Mefistófeles? A idéia da venda da alma em troca do conhecimento inspirou a peça de Marlowe, o livro de Goethe e duas óperas importantes: "A Danação de Fausto", de Berlioz, e "Dr. Atomic", de John Adams (sobre Oppenheimer, o Fausto americano). Ambas fazem parte desta temporada no Lincoln Center. As montagens estão espetaculares, pois usam os mais modernos recursos da tecnoalquimia de projeções computadorizadas. Você não vai a Nova York? Ora, as óperas estarão disponíveis no site da Metropolitan Opera House. Esqueça a crise por um momento. Ela será farelo dentro de alguns anos. Mas, por milênios, os homens ainda ouvirão Berlioz. E vão cantar e dançar como sempre fizeram através dos séculos.

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