Antonio Delfim Netto
Uma grande tragédia paira sobre o capitalismo. A ameaça de sua "refundação" por cérebros peregrinos em resposta à crise de incompetência e imoralidade que se apropriou do sistema financeiro. Este destruiu o fator catalítico que faz funcionar toda a organização produtiva (real e financeira): a confiança entre os agentes. É ocioso discutir as causas da crise ou a responsabilidade de quem (agentes políticos e/ou instituições) poderia tê-la prevenido, mesmo porque se a crise não fosse a atual, seria outra. Apenas, talvez, em tempo e dimensão diferentes.
A flutuação do nível de atividade é um fator ínsito no próprio processo de desenvolvimento. Isso e a sua tendência a aumentar a desigualdade foram, desde sempre, os fundamentos das críticas ao capitalismo. O problema é que todas as organizações sociais alternativas "inventadas" para superá-las terminaram muito mal: 1) revelaram-se altamente ineficientes do ponto de vista produtivo; e 2) sacrificaram a liberdade de iniciativa dos indivíduos, que são a base das inovações que fornecem, permanentemente, a nova energia para o crescimento.
Outra idéia que é preciso incorporar é que não existe contradição entre um Estado forte, responsável e limitado constitucionalmente e o que se chama imprecisamente de "capitalismo". Ele não é uma coisa. É um processo evolutivo. Não foi inventado. Foi sendo "descoberto" pelo homem ao longo de sua história no processo de seleção natural de como obter a sua sobrevivência material dentro de um sistema que exige, necessariamente, a cooperação social. Trata-se da organização dos mercados, que foi se aperfeiçoando desde que o homem passou do nomadismo à atividade agrícola, controlou os animais que hoje são domésticos e se reuniu em aglomerações urbanas. Ficou cada vez mais visível que cada um, exercendo livremente sua atividade e procurando o seu bem estar material, poderia cooperar com os outros - pela troca do produto do seu trabalho - e que isso criava uma relativa "harmonia" entre os seus interesses.
O fator catalítico invisível que sustenta tal sistema é a confiança entre os indivíduos. E o que reforça e dá funcionalidade a essa confiança? É a existência de um Estado, isto é, de uma autoridade consentida, capaz de garantir a propriedade privada (a condição para cada um apropriar-se dos resultados de sua atividade) e obrigar o cumprimento dos contratos (as obrigações assumidas por cada um com relação aos outros no exercício de sua cooperação produtiva).
O Estado constitucionalmente regulado precede e sustenta a organização dos mercados, cuja dinâmica progressiva é alimentada pela liberdade criativa dos indivíduos em resposta aos incentivos que o induzem à ação. Os mercados não sobrevivem nem no Estado absoluto, nem no Estado de anarquia. Por definição, o Estado constitucionalmente organizado é o "garante" da organização da atividade econômica através dos mecanismos (cada vez mais aperfeiçoados) dos mercados. E é ele que a salva quando o acidente destrói o fator catalítico que a sustenta, a confiança.
É preciso, portanto, compreender os riscos derivados da pretensão dos "refundadores" do capitalismo quando confundem os efeitos imensamente positivos das "inovações" dos mercados financeiros com as causas da crise que foram: 1) o uso da falsa idéia que modelos matemáticos são capazes de, com base no passado, "precificar" os riscos futuros; 2) a imoralidade dos bancos de investimento e "hedge funds" que esconderam suas contingências passivas dos balanços; 3) o uso de incentivos perversos; e, finalmente, 4) a atitude laxista das autoridades monetárias, que se recusaram a atender à política monetária do "feijão com arroz". Preferiram surfar a agradável e falsa prosperidade produzida por uma liquidez fora de qualquer controle.
O gráfico abaixo mostra o bem estar material produzido a partir de meados do século XVII com a revolução agrícola e industrial produzida pelo uso intensivo dos mercados e pela liberdade de criação científica e tecnológica do homem em resposta a incentivos adequados.
Entre os anos 1000 e 1750, o mundo assistiu a sete séculos e meio de prática estagnação, produzida pelo excesso do pensamento econômico-moral dos escolásticos e pelo exagero dos controles dos governos no mercantilismo. Estes, ao lado de crises recorrentes de abastecimento que produziram desde a Grécia e Roma, inibiam a incorporação dos progressos científicos e tecnológicos. A partir de 1750, a melhora das instituições, a incorporação do conhecimento e a expansão do comércio e do consumo, combinados com a liberdade de iniciativa, foram impondo a dominação da organização da produção através dos mercados. A primeira racionalização desse processo foi feita por Adam Smith, em 1776.
Deus livre os feiticeiros "refundadores" da tentação de, com excessiva regulação, impedir as inovações que nascem espontaneamente da criatividade do homem, pois ela é a energia que move o desenvolvimento.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
contatodelfimnetto@terra.com.br
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